quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A lista das Touza*

Entre 1941 e 1945, três irmãs galegas de Ribadavia, as Touza, montaram uma rede que apoiou a fuga de centenas de judeus sem visto, fazendo-os entrar ilegalmente em Portugal. O neto de Lola Touza acredita que ela conheceu o cônsul Aristides Sousa Mendes



Imagine-o como um velho filme de espiões a preto-e-branco. Haveria nevoeiro como na cena final de Casablanca, quando Ilse e Rick se separam. Mas, em vez de um avião que parte, chega um comboio a uma pequena estação de província. A locomotiva chia e detém-se entre uma nuvem de vapor. Alguns passageiros descem das carruagens e dirigem-se ao quiosque onde três mulheres oferecem bebidas frescas.

Entre Março de 1927 e o final de 1929, o cônsul de Portugal em Vigo, Aristides Sousa Mendes, deslocar-se-ia a Madrid com alguma regularidade, para se avistar com o embaixador Melo Barreto. Em Ribadavia, o comboio fazia uma paragem de vinte minutos para meter água e muitos passageiros desciam das carruagens para tomar um refresco, um licor, um copo de vinho, ou comer os famosos biscoitos que se vendiam no quiosque da estação, gerido por três irmãs solteiras, as Touza (Lola, Amparo e Julia).

Julio Touza, neto de Lola, acredita que a sua avó e o cônsul português se podem ter conhecido aí, numa dessas paragens. “O comboio parava em Ribadavia e eu acredito que tenha conhecido a minha avó nessa altura”, diz o arquitecto.

Trata-se, é verdade, de uma mera suposição. Julio Touza, arquitecto em Madrid, está ainda a reunir dados que permitam confirmá-la ou desmenti-la. Mas não deixa de ser verosímil que, tendo ou não chegado a conversar, Aristides Sousa Mendes e as irmãs Touza se tenham cruzado, por mais de uma vez, na estação ferroviária de Ribadavia. Oito décadas depois, não há dúvidas de que estão juntos: no jardim do Museu Yad Vashem, de Jerusalém, onde se plantam árvores em homenagem àqueles que, durante a Segunda Guerra Mundial, ajudaram a salvar judeus em fuga da perseguição nazi.

A forma como Aristides Sousa Mendes, então cônsul em Bordéus, emitiu, em 1940, à revelia do governo de Salazar, vistos que permitiram a fuga de cerca de trinta mil pessoas (dez mil das quais eram judeus), obteve reconhecimento internacional pouco tempo depois da derrota dos nazis. A história das irmãs Touza, porém, permaneceu em segredo durante décadas e só foi desvendada em 2005. Chamam-lhes, agora, as Schindler galegas.

Em 1941, a Espanha sob a ditadura de Francisco Franco tinha ainda muito viva a memória do envolvimento de Hitler na guerra civil de 1936-39, o qual permitiu às tropas franquistas vencerem os republicanos. Apesar da aliança, o regime era relativamente tolerante com os judeus em trânsito para os portos portugueses ou africanos durante a Segunda Guerra Mundial. As irmãs Touza, porém, tinham chegado a ser presas durante a guerra civil, por levarem comida a republicanos detidos, e, por isso, mantiveram sempre em segredo toda a operação que terá permitido que cerca de 500 judeus fugidos do nazismo chegassem a Portugal, a caminho da liberdade.

O silêncio só foi quebrado aquando da morte de Antón Patiño Regueira, um livreiro de Vigo que tomou conhecimento do caso por intermédio de um emigrante galego regressado de Nova Iorque, onde tinha mantido contacto, na década de 1960, com Isaac Retzmann, um dos judeus auxiliados pelas Touza. A edição do livro Memória de Ferro, em 2005, revelou o esboço da investigação que Regueira tinha efectuado, a qual permitiu, mais tarde, homenagear as três irmãs de Ribadavia. Mais recentemente, a história foi também narrada no livro Entre Bestias y Héroes, do conceituado jornalista Diego Carcedo.

Tanto quanto é possível saber, a história começa numa noite de Abril de 1941, na mesma estação ferroviária por onde, às vezes, Aristides Sousa Mendes passava em trânsito entre Vigo e Madrid. Lola Touza reparou num homem alto, sujo e com a barba por fazer, o qual permanecia sentado, há horas, num banco de madeira a um canto da gare, vendo os vagões passarem Minho acima, Minho abaixo. Acercou-se dele e, mesmo não entendendo o idioma em que falava, ajudou-o. Chamava-se Abraham Bendayem e terá sido o primeiro a ser salvo pela pequena rede que as Touza, com Lola à cabeça, montaram nos anos seguintes, abrindo aquela que seria uma das mais importantes rotas clandestinas de fuga de judeus pela Península Ibérica.

Para assegurar a confidencialidade da operação, a rede era composta por um contingente mínimo: as três irmãs, dois taxistas, o Rocha e o “Caveira”, que conduziam um Dodge, um emigrante retornado, a quem chamavam “O Evangelista” e que servia de tradutor, e um barqueiro, Ramón Estévez – que ainda está vivo. Conta, por exemplo, que estava a ajudar o pai, Francisco Estévez, a descarregar uma carreta de tijolos quando Lola apareceu a perguntar se ia pescar e se, nesse caso, podia fazer o favor de passar para Portugal uma pessoa que não podia viajar de carro ou comboio. Era um alemão.

“Nessa mesma madrugada, às quatro em ponto, fomos a casa de Lola levando canas de pesca. Dissemos ao estrangeiro que não falasse. Fomos directamente para as margens do Minho e andámos toda a noite. Ninguém suspeitaria de nada, uma vez que era comum os pescadores saírem a essa hora para pescar trutas e enguias para matar a fome”. Horas depois, tinham percorrido 40 quilómetros por um caminho empedrado. Chegaram a Frieira, uma aldeia galega junto a uma das partes mais estreitas do rio. “Como eu era um miúdo – recordou Ramón Estévez no livro de Carcedo –, o alemão perguntou-me se eu me importava que tirasse a roupa. Disse-lhe que não. Ele dobrou-a e prendeu-a à cabeça com o cinto. Disse-me que nunca mais me esqueceria e deu-me um duro de prata. Vi como entrou na água e como alcançou a margem portuguesa e, desde aí, nunca mais soube nada dele. Tinha o número 451 tatuado no antebraço. Disse que se chamava Abraham Bendayem”.

Do outro lado do rio, no concelho de Melgaço, Cevide orgulha-se de ser “o lugar mais a norte de Portugal”. Em São Gregório, ali perto, havia, na época, um posto da Guarda Fiscal, o que não impedia que passasse por Cevide uma das mais importantes rotas de contrabando entre os dois países, beneficiando da mancha florestal que ainda persiste, cortada pelo cursos do Minho e do Trancoso, que ali se encontram.

Sabendo-se que o quiosque das Touza na gare de Ribadavia era utilizado como esconderijo para o café Sical que vinha do lado português da fronteira, não é difícil imaginar que os judeus em fuga tenham percorrido, para chegar a Portugal, os mesmos caminhos que eram utilizados pelos contrabandistas. “Mas nunca nenhum dos antigos contrabandistas com quem falei mencionou essas histórias”, ressalva Angelina Esteves, chefe da divisão de Cultura da Câmara de Melgaço, que tem a seu cargo o Espaço Memória e Fronteira, com uma sala dedicada ao contrabando.

O segredo era, também do lado de cá, a alma do negócio. Não só pela ilegalidade daquela actividade, mas também porque, a partir de 1942, a autorização para a circulação de judeus em Portugal passou a carecer de autorização da PIDE. Em Ribadavia, o silêncio durou sessenta anos, quanto mais não fosse porque, em 1941, a Gestapo tinha agentes destacados em Vigo, acompanhando o comércio de volfrâmio a partir dos portos galegos. Dois desses agentes terão, de resto, chegado a deslocar-se a Ribadavia, à procura de um judeu alemão fugido de França – seria o mesmo Abraham Bendayem que escapara de um campo de detenção de Lyon com um asturiano que foi abatido a tiro.

A necessidade de nunca falar do assunto, mesmo após o fim da guerra, justifica também o facto de, até 2005, Julio Touza nunca ter ouvido falar das actividades clandestinas da avó. “O meu pai, sim, sabia da história e deve ter ajudado. Tinha, na altura, 26 anos. Mas nunca me contou nada”, disse ao P2. “Ele foi professor até à década de 1950 e, quando abandonou o ensino, ocupou um cargo dirigente numa empresa de electrodomésticos, com direito a carro e motorista. Escolheu, para o lugar, José Rocha, o filho de um dos taxistas que ajudavam a minha avó e as minhas tias. Depois, quando este emigrou, contratou José Miguez, filho do ‘Caveira’. Sem dúvida que o meu pai não só sabia da história como continuou a ter a seu lado os filhos daqueles que colaboraram com a minha avó”.

Desde o dia em que a história foi revelada, Julio Touza recebe quase diariamente contactos de escritores, jornalistas e cineastas, interessados em contar a história “ao estilo da lista de Schindler”. “Respondo a todos que ainda não é o momento. Que uma história de silêncios, como esta, deve tranquilizar-se na alma antes de poder ser contada com simplicidade, mas com toda a crueza, para que não se repita a sangria do Holocausto”, diz.

Apesar do resguardo, o arquitecto vai narrando alguns episódios que ajudam a compor o quadro da época. Recorda, por exemplo, a bolsa de moedas de prata que Lola guardava num gavetão do velho aparador. “Ela não queria que ninguém lhe mexesse. Eu pensava que ela coleccionava moedas, mas agora percebo que as guardava como recordação de outros tempos. Usara-as para pagar favores e ajudar os judeus em fuga. Mas nunca ninguém na família o soube, nem sequer o seu único filho, o meu pai”, contou numa entrevista.

Guillermo, outro dos netos de Lola, recordou ao jornal La Opinión ter encontrado uma vez uma cama num sótão da casa, entre enormes vigas e sempre fechado. Seria a cama onde os judeus pernoitavam, escondidos numa divisão obscura.

Lola era, nos anos 1940, conhecida como “a mãe”, por ter tido um filho de pai incógnito. Seria, de resto, uma bela mulher, cuja fotografia tinha chegado a circular pela frente republicana, para animar os soldados. Vivia com as irmãs numa espécie de casino, geria o quiosque da estação e esperava os comboios com uma cesta de doces nas mãos. Umas vezes oferecia os caramelos e biscoitos de amêndoa pelas janelas das carruagens, outras entrava nos comboios. Nessas ocasiões, tomava conhecimento do dia e da hora da chegada dos judeus, através de contactos mantidos entre Girona, Medina del Campo e Monforte. Os fugitivos eram escondidos, alimentados e, depois, seguiam para a fronteira um a um, ou em pequenos grupos de três ou quatro pessoas, esperando chegar aos portos portugueses onde podiam embarcar para o continente americano.

Ao P2, Julio Touza acrescenta que a fuga também utilizava, às vezes, o comboio: “A minha avó e as minha tias, gerindo o quiosque da estação, conheciam muitos empregados da ferrovia. Creio que, às vezes, escondiam os judeus em vagões de mercadorias e conseguiam que algum funcionário os ajudasse a saltar onde fosse mais fácil passar para Portugal. Suponho que também pagassem a alguns guardas para que os não detivessem, embora quase sempre evitassem as fronteiras e passassem pelo rio ou pelos montes”.

O silêncio, esse, manteve-se sempre. Lola morreu em 1966, Amparo em 1981 e Julia em 1983 – sem que nada daquela história fosse revelado. Só em Setembro de 2008, as irmãs Touza foram homenageadas em Ribadavia pela ajuda prestada aos judeus. “Recordar as irmãs Touza é um exemplo para o futuro, de amor e de valor, princípios tão escassos nestes tempos de ódios”, escreveu, então, Ron Pundak, director-geral do Peres Center for Peace.

*Reportagem publicada no dia 4 de Fevereiro no P2 do Público