segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Quero ser um Catroga*



Poesia pura. Numa só semana ficámos a saber que a imensa Via Láctea é branca “como as neves da Primavera acabadas de cair” (ou como o cabelo do economista Eduardo Catroga); e que alberga qualquer coisa como cem mil milhões de planetas - um número tão bestial que, para se ter uma ideia aproximada da sua dimensão, é preciso compará-lo com coisas realmente grandes, como o montante da dívida pública portuguesa ou a falta de tino de alguns políticos. Suponho, aliás, que ainda este mês escutaremos o ministro Miguel Relvas incentivar os nossos jovens, altamente qualificados, a universalizarem-se e emigrarem para este inexplorado filão de oportunidades, que ajudarão a civilizar para gáudio da pátria (ou isso ou a ASAE investigando a suspeitíssima Via Láctea, não vá a nívea galáxia ser constituída por leite em infracção às leis da concorrência).

Sendo uma fonte inesgotável de boas notícias, do infinito silêncio espectral também, às vezes, vêm aos trambolhões coisas menos agradáveis, como satélites desgovernados e assim. Era mais simpático se chovessem pastéis de nata, ou, vá lá, croissants de chocolate, mas, em todo o caso, continuo muito determinado a não permitir que o meu optimismo se inquine por dá cá aquela palha. Pretendo mesmo encher-me de soberba e acreditar na possibilidade de me transformar num Catroga da vida: em vez de empobrecer austeramente e de encolher de frio tiritando nas longas noites do “Inverno da nossa resignação”, como lhe chamou o espanhol Manuel Rodríguez Rivero, planeio trocar o meu salário por uma remuneração compatível com as reais necessidades do país. Creio, aliás, que uma boa parte da crise se resolverá muito simplesmente (com a compreensão de alguma entidade patronal): equipare-se o meu ordenado ao do presidente do conselho geral e de supervisão da EDP. Como 50% do que passarei a ganhar vai para impostos, a receita do Estado crescerá e isso terá um efeito redistributivo para as políticas sociais. Catroga dixit. E se o visionário aposentado o diz, eu baixo humildemente as orelhas. Afinal de contas, entre nós os dois é ele quem tem o mais espectacular currículo da Via Láctea e arredores.

Ao contrário do que sucede com os satélites e outros objectos sujeitos à gravidade, os ordenados simpáticos do meu país tendem a chover persistentemente em cima dos mesmos indivíduos, chamem-se eles Catroga, Vara, Cardona, Lopes, Pinto ou Mexia. Para os demais e comuns mortais, incapazes de fazerem mais do que trabalhar para ir vivendo, as respectivas remunerações estão transformadas numa espécie de “salário do medo”. Não vamos, como no romance de Georges Arnaud que Clouzot filmou, a conduzir um camião carregado de explosivos por uma estrada sul-americana. Às costas temos apenas o peso (cada vez mais) leve do nosso ordenado minguante e o enorme fardo que é o medo de o perder. Vamos aceitando, por isso, que no-lo roubem aos bocadinhos, em pequenas garfadas, até que já não nos sobre dignidade nenhuma e nos vendamos por três vinténs.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 17 de Janeiro de 2012