quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Marcela e Elisa, um amor de contrabando*

Um século antes da legalização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, duas espanholas conseguiram enganar um padre e casaram-se pela Igreja. Descobertas, fugiram. Há 110 anos viviam no Porto e aqui tiveram uma filha. Por Jorge Marmelo


Fotografia do casamento

Se uma grande história de amor é aquela cujos ecos ultrapassam as contingências do seu tempo e se imortaliza, como sucedeu com a paixão de Pedro e Inês (ou de Romeu e Julieta), o romance de Marcela e Elisa é, sem dúvida, “uma das mais extraordinárias histórias de amor de todos os tempos”, conforme lhe chamou o escritor espanhol Manuel Rivas. Eram ambas mulheres e conseguiram o impensável: Elisa vestiu-se de homem, enganou um padre e, assim, casou com Marcela pela Igreja, na paróquia de S. Jorge, na Corunha, a 8 de Junho de 1901.

“Impressionou-me a inteligência das duas mulheres e a capacidade de traçarem um plano que lhes permitisse viver juntas o resto da vida, serem reconhecidas como marido e mulher e até chegarem a ter descendência”, diz Narciso de Gabriel, o professor universitário galego que dedicou quase quinze anos a investigar a incrível história de Marcela e Elisa.

Alén dos homes foi publicado em 2008 e acabou por ser traduzido para castelhano, sob o título Más allá de los hombres. Há também um filme em preparação, que deve ser realizado por Isabel Coixet, a autora de A Vida Secreta das Palavras.

Existe ainda, em Espanha, um prémio que leva o nome de Elisa e Marcela, destinado a distinguir iniciativas que defendam os direitos dos homossexuais. E a Universidade da Corunha tem actualmente em exposição uma mostra dedicada ao tormentoso caso das duas mulheres.

Em Dezembro de 1901, há exactos 110 anos, Elisa e Marcela estavam, porém, longe da cidade do Norte da Galiza que agora as recorda. Viviam na cidade do Porto, em relativo sossego depois da agitação que tinha provocado a chegada do insólito casal no Verão anterior. As notícias que O Commercio do Porto publicou durante o mês de Agosto de 1901 tinham sempre o mesmo título: As duas hespanholas: mulher-homem. Ainda não se usavam nos jornais palavras como homossexualidade ou lesbianismo, pelo que o caso foi contado com relativa discrição, entre notícias de agressões à pedrada e de homens mordidos por cães. O episódio, ainda assim, deu brado, conforme se percebe na edição do dia 30, que narra a libertação de Marcela e Elisa da Cadeia da Relação: havia “grande aglomeração de curiosos para ver as duas mulheres, sendo necessário os soldados da guarda dispersarem a multidão, que fez grande berreiro quando o carro seguiu o seu destino”.

Chegara ao fim, na véspera, o processo judicial em que as duas cidadãs espanholas se viram envolvidas durante a passagem pelo Porto. Tinham fugido para Portugal depois do escândalo que se armara na Galiza, onde o “casamento de contrabando” andou nas primeiras páginas dos jornais, alimentando também a imprensa de Madrid.

Mas a história, iniciada alguns anos antes, havia ainda de ter outras complicações, obrigando o venturoso casal a empreender nova fuga, desta vez para a Argentina.

Daquele período conturbado ficaram três fotografias: na do casamento, muito solene, captada por José Sellier, um fotógrafo francês da Corunha, Marcela está de negro e o noivo aparece segurando a aba do casaco com a mão direita, a sombra de um buço imberbe sobre o lábio; na do relojoeiro José Rodrigues, da Rua do Bonjardim, aparecem juntas na prisão do Aljube, no Porto, como homem e mulher, e Marcela parece envelhecida, com os olhos encovados, e Elisa, com o bigode já mais pronunciado, poderia facilmente ser tomada por um banal caixeiro do Porto; na terceira, Elisa espreita o casario da cidade pelas grades da prisão, com um chapéu de homem na cabeça, evitando ser fotografada pelo “repórter” do El Suceso Ilustrado.

Elisa e Marcela conheceram-se muito jovens, então estudantes da escola da Corunha onde se formavam as professoras primárias. Tornaram-se inseparáveis e essa proximidade terá levado os pais de Marcela a enviá-la para Madrid na tentativa de apaziguar a primaveril relação das moças. Porém, como em todos os grandes romances, também neste caso o destino — ou a indeclinável lei das coincidências que com ele se confunde — parece ter desempenhado o seu papel de inveterado alcoviteiro: em 1900, Elisa estava a ensinar interinamente na aldeia de Couso, situada a meio caminho entre a Corunha e Finisterra, na Costa da Morte; Marcela, já mestra superiora, instalara-se na escola de Calo, no município vizinho de Vimianzo.

Estavam, pois, o fogo e a estopa juntos e, segundo os relatos recolhidos no livro de Narciso de Gabriel, dormiam frequentemente na casa de Marcela, em Dumbría. Não sendo nem a primeira nem a última vez que duas mulheres mantinham uma relação amorosa, o caso seria comentado e motivo de algum escândalo, quanto mais não fosse porque a rigidez dos códigos morais da época proibia às professoras que usassem maquilhagem ou vestidos vistosos.

Em alguns colégios eram mesmo proibidas de casar. Nada, portanto, podia ajudar a prever o que estava para acontecer — excepto, eventualmente, o facto de também na Galiza estar registado o primeiro caso de um casamento católico entre dois homens, Pedro Díaz e Muño Vandilaz, celebrado a 16 de Abril de 1061, há 950 anos, na capela de Rairiz de Vega (a acta foi encontrada há alguns anos no Mosteiro de S. Salvador de Celanova).

Em 1901, porém, as raparigas necessitaram de fazer mais do que apresentar-se diante de um padre e declarar a intenção de viverem juntas até que a morte as separasse. Começaram por encenar uma zanga e, logo depois, Elisa Sanchez Loriga partiu para a Corunha, então uma pequena cidade de província. Ali cortou o cabelo, passou a fumar e a vestir-se como um homem e adoptou uma nova personalidade. Passou a ser Mario, com uma biografia decalcada de um primo que tinha morrido num naufrágio e alegando ser filho de um herege inglês.

Apresentou-se, assim, diante de um padre, declarando pretender converter-se ao catolicismo. A 26 de Maio passou pela pia baptismal e fez a primeira comunhão e, daí a dias, a 8 de Junho, pelas sete da manhã de um sábado, casava com Marcela Gracia Ibeas. Esta, antecipando-se a eventuais comentários, terá tomado a iniciativa de reconhecer as semelhanças físicas entre Mario e Elisa. “Têm a mesma estatura, a voz igual e as mesmas maneiras. Até os génios são parecidos”, terá dito, de acordo com os testemunhos recolhidos por Narciso de Gabriel.

A noite de núpcias foi passada na pensão Corcubión, na calle de San Andrés, na Corunha, mas o idílio do casal durou pouco. Dias depois o embuste tinha sido descoberto e passara a alimentar as páginas dos jornais, que exercitavam a criatividade em títulos como Um casamento sem homem. “De certeza que o logro não teria sido descoberto se as duas mulheres não tivessem cometido a ousadia de regressar casadas a Dumbría, a pequena vila onde antes conviviam como duas mulheres”, assegura Narciso Gabriel na resposta a um conjunto de questões que o P2 lhe colocou por email.

No livro que recupera a história, Narciso de Gabriel conta que os detalhes mais suculentos da história eram disputados pelos principais jornais, que se vendiam como pãezinhos quentes. O Nuevo Mundo, ilustrado, chegou a vender 19 mil exemplares em Madrid, em apenas dois dias, e a escritora Emília Pardo Bazón lamentava que fosse “tão escabroso o inaudito folhetim” que a imprensa divulgava.

Apesar do escândalo, o registo de casamento nunca chegou a ser anulado e permanece válido. Elisa e Marcela, porém, viram-se despedidas das respectivas escolas, excomungadas e perseguidas pela justiça. Fugiram. Primeiro para Vigo e, depois, para o Porto, provavelmente julgando que, noutro país, seriam esquecidas e poderiam viver em paz como homem e mulher. Marcela terá chegado ao Porto ainda a 27 de Junho. Regularizou imediatamente a sua situação no Consulado de Espanha e instalou-se na pousada A Mesquita, da Rua do Bonjardim.

Após a chegada de Elisa, em data não determinada, terá chegado a trabalhar no Café Lisbonense, recebendo uma diária de 240réis. Mas tudo se havia de complicar quando, segundo o Jornal de Notícias, uma mulher chamada Generosa decidiu denunciar o casal, alegadamente porque “Mário” a tinha insultado. Dissera-lhe que ela “nada devia à providência em formosura”. Segundo O Commercio do Porto, Elisa/Mario Sanchez, de 32 anos, e Marcela Gracia, de 28, estavam, então, instaladas “numa hospedaria particular da Praça da Batalha”.

Tinham obtido cartas de residência junto do consulado espanhol: a de Marcela estava em ordem, mas Elisa identificava-se, então, como José Mal Sanches. Perseguidas por Salvador Millán, um capitão da Guarda Civil de Vigo, foram facilmente descobertas e capturadas a 16 de Agosto, e logo recolhidas à prisão do Aljube. Mas a cidade, ao que parece, adoptou a defesa do casal e várias notícias posteriores dão conta de donativos em dinheiro e vestuário que foram entregues na prisão, em alguns casos por iniciativa de jornais. Noticiava-se, inclusivamente, o facto de terem sido visitadas por um homem.


Elisa e Marcela na cadeia do Aljube, no Porto


A 22 de Agosto, o Commercio dedicava ao assunto um artigo um pouco maior, referindo que Elisa e Marcela “téem dado lugar a largos commentários, pelo facto de haverem conseguido matrimoniar-se em Hespanha” e contando que a mais velha tinha deixado de usar traje masculino, passando a envergar um vestido e roupa branca que lhe foram “fornecidos obsequiosamente” por um escrivão da polícia, Francisco Fogaça. No mesmo dia, o Jornal de Notícias explorava a situação recorrendo ao humor: “Francamente, [Elisa] parecia-nos muito mais atraente vestida de homem.”

“A imprensa do Porto fez uma cobertura espectacular do caso das duas espanholas casadas. Foi aí, e também em Lisboa, que consegui uma boa parte das fontes que me permitiram reconstruir a trajectória de Elisa e Marcela”, conta Narciso de Gabriel ao P2. Naquele final de Agosto, O Commercio do Porto explicava que Elisa estava acusada de viciação de carta de residência — suspeita confirmada após um “exame que lhe foi feito” na sequência de uma alegação de hermafroditismo — e Marcela encontrava-se detida na condição de “encobridora” do crime. As autoridades espanholas tinham já apresentado um pedido de detenção e extradição, “por estarem ali processadas”, mas, face ao apoio popular, acabaram por ser libertadas ao fim de 13 dias de cativeiro.

Desapareceram também das páginas dos jornais, deixando os leitores a braços com o muito mais insípido folhetim Margarida, de A. Brechat, diariamente publicado no rodapé da primeira página d’O Commercio. O caso apagou-se, pois, com o calor tórrido daquele Verão de 1901.

Elisa e Marcela chegaram ainda a deslocar-se à redacção do Jornal de Notícias para agradecer o apoio prestado — Elisa ter-se-á despedido com um “shake-hand vigoroso” –, e, depois, o casal instalou-se em casa do co-proprietário do Café Lisbonense. Mudar-se-iam, mais tarde, para o Hotel Gibraltar da Rua da Batalha e, segundo a coluna Alacridades d’O Primeiro de Janeiro, viveriam de “costuras, bordados e outras prendas manuais em que nos dizem que são exímias”.

A 8 de Janeiro de 1902, porém, o casal voltou à ribalta: Marcela tinha dado à luz uma menina, não se sabe fi lha de quem, confirmando, de resto, uma nota da Secção Cómica do Jornal de Notícias de 17 de Agosto, na qual se dizia que “Marcela (a noiva) se acha em estado de gravidez” – um pormenor a que, então, não se prestou muita atenção. Consumado o parto, o jornal voltou à carga, gracejando, em verso, que se tratava de um caso de geração espontânea, “como entre as lombrigas”. Elisa, porém, enfrentou de peito aberto os jornalistas que se deslocaram ao Hotel Gibraltar em busca de novidades: “É uma coisa do outro mundo que uma mulher tenha um filho ou uma filha? Não há nada mais natural. Não somos criminosas”, conta Narciso de Gabriel no livro que dedicou à história.

Cansadas da permanente atenção que sobre elas recaía, e ainda acossadas pela justiça espanhola, Marcela e Elisa acabaram por partir outra vez, desta feita a caminho da Argentina. Em 1903, segundo concluiu a investigação desenvolvida pelo catedrático galego, Elisa, que passara a chamar-se María Sánchez Loriga, casou com Christian Jensen, um homem 24 anos mais velho. O matrimónio, porém, não se consumou e o marido, desconfiado, tratou de investigar quem era María e aquela Carmen, sua suposta irmã, com um filho nos braços – e descobriu a história toda. Mais uma vez, as duas mulheres tiveram que enfrentar a justiça, que, em 1904, dissolveu o casamento de Elisa.

A partir daqui, o rasto histórico de Marcela e Elisa extinguiu-se. Talvez tenham, enfim, conseguido amar-se em paz, algures na agreste imensidão da Pampa ou do Chaco, sem imaginarem, sequer, que a sua história se perpetuaria por mais cem anos. Ou não.

Narciso de Gabriel revela que, após a edição do livro em castelhano, recebeu de um leitor das Astúrias um recorte da revista Nuevo Mundo, datado de 1909 e informando que Elisa se suicidara em Veracruz, no México. “Fiz várias indagações para tentar confirmá-lo, mas ainda não consegui. Em todo o caso, a notícia é seguramente verídica e ilustra bem as dificuldades que sofriam, e ainda sofrem, as pessoas que têm uma orientação ou uma preferência sexual que não corresponde ao cânone social”, diz de Gabriel.

*Reportagem publicada no P2 do Público no dia 10 de Dezembro de 2011