Voltei hoje a ver um homem muito feio e coxo cujos modos façanhudos me inquietam um pouco: tem o cabelo curto mas revolto, uns olhos claro e pequeninos, daninhos, um cenho protuberante e servido por espessas sobrancelhas grossas, o rosto picado e um bigode tipo escova, parecido com o do Camilo Castelo Branco e o do Nietzsche. Vejo-o e penso nos indivíduos que aparecem nas estampas rurais do século XIX, nas fotografias dos condenados da Cadeia da Relação, e imagino que possa ter sido um artilheiro miguelista que tenha estado congelado durante cento e cinquenta anos (e tivesse sido descongelado há pouco). Acresce que arrasta uma das pernas, exactamente como se ainda padecesse de um ferimento provocado pelas bombardas de antigamente. Quando hoje o vi, o bom e horrendo homem levava um saco de uma empresa de exames e análises clínicas, comprovando que padece de alguns achaques. Sendo um pouco fantasioso, imaginei que a segurança social continua a cobrir as despesas de saúde de um combatente das guerras liberais (esses madraços!), e que um ministro qualquer há-de, um dia destes, aparecer no parlamento insurgindo-se contra esta pouca-vergonha, este défice oculto e, enfim, o descalabro a que este país chegou. Talvez o governante em causa aproveite até para questionar a existência de pessoas muito feias, propondo que, tendo em conta o estado debilitado das finanças públicas, se lance um imposto excepcional sobre a fealdade.
(parece que há hoje uma conferência de imprensa do ministro Vítor Gaspar; contribuintes, temei!)