segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Paris não existe*



A cada um a sua nostalgia. Enquanto o regular e pacato contribuinte português há-de ter saudades do tempo em que se acreditava que os impostos serviam para sustentar um sistema socialmente justo de serviços públicos gratuitos e universais, Gil Pender, o personagem central de Meia-Noite em Paris, o mais recente filme de Woody Allen, prefere sonhar com aquela década de 1920 em que a capital francesa parecia ser o trepidante centro do mundo artístico. Sendo um ser ficcional e não tendo, por isso, de lidar com o absurdo e as decepções da realidade quotidiana, o candidato a escritor tem mais sorte do que qualquer um de nós, melancólicos financiadores, afinal, dos lucros presentes e futuros da alta finança internacional.

No filme, Gil Pender é abordado por um velho Peugeot (talvez um Type 105). Entra nele e, ao mesmo tempo, embarca numa espécie de Regresso ao Futuro. Viaja no tempo e vê-se a conviver com Zelda e F. Scott Fitzerald, com Pablo Picasso, com Gertrud Stein, com Cole Porter, com Salvador Dalí e com Man Ray, Buñuel, Joséphine Baker e Ernest Hemingway, mais o toureiro que há-de ser personagem do romance Fiesta. E também conhece Adriana, uma modelo de Picasso cuja nostalgia é a Belle Époque. Com ela, e graças à subtil magia do cinema e de Paris, viajará também até 1870 e aí conhecerá Toulouse-Lautrec, Paul Gauguin e Edgar Degas. Como ninguém está bem no tempo em que vive ou com a vida que tem, os românticos e os impressionistas padecem igualmente da nostalgia do passado e declaram o sonho de ter vivido num tempo ainda mais remoto. Parece, pois, que, conforme escreveu Enrique Vila-Matas, Paris nunca se acaba e que, mais do que isso, é possível que Paris se desdobre continuamente em novas realidades paralelas e em épocas luminosas e estimulantes, acompanhando a necessidade de vivermos outras vidas e outras eras.

Quando não está mergulhado naquela espécie de inebriante metarrealidade, Gil Pender não deixa de amar a Paris do presente, com os seus bistrôs e os comerciantes de antiguidades, as luzes e as pontes, a chuva e os infinitos recantos de uma cenário que parece ter sido criado para os sonhos e para condensar todos os passados que ali ocorreram. O filme de Woody Allen é tão bom que até dói, mas a Paris que nele aparece é apenas um cenário de bilhete-postal, no qual não tem lugar, por exemplo, a cidade marginal da Morte a Crédito de Céline, nem os carros ardendo à noite nos bairros da periferia, os assaltos nas esquinas mais sujas, os caixotes do lixo selados para prevenir atentados terroristas ou os detectores de metais na entrada dos museus. A Paris de Woody Allen não existe. É uma quimera, uma espécie de terra maravilhosa, de fábula, tão falsa e irreal como a ideia de um país chamado Portugal ter sido alguma vez bem gerido e um sítio cheio de futuro. Vivendo na “choldra ignóbil” de Eça, podemos sempre, ainda assim, inventar Paris - um sítio para onde se possa fugir, nem que seja, como na canção de Samuel Úria, apenas um refúgio construído de raiz “com cobertores, no chão”, onde esperaremos, encolhidos, que a crise passe.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 20 de Setembro de 2011