segunda-feira, 15 de agosto de 2011

No bolso do morto*

Foi há coisa de um ano que aqui referi o romance Somos o esquecimento que seremos, de Héctor Abad Faciolince, e o poema que o escritor colombiano achou no bolso das calças do pai quando o encontrou assassinado numa rua de Bogotá: “Já somos o esquecimento que seremos/o pó primordial que nos ignora”.

O poema, cujo primeiro verso serviu de título ao romance, estava assinado “JLB” e Faciolince entendeu que se tratava de um escrito de Jorge Luís Borges. A história desse controverso escrito não terminou aí, porém. A sua autoria foi contestada, inclusivamente pela zelosa viúva de Borges, e armou-se uma daquelas polémicas em que os literatos, às vezes, se exercitam. A controvérsia, porém, não deu um filme – deu dois livros. Traiciones de la memoria, do próprio Héctor Abad Faciolince, e Los falsificadores de Borges, do argentino Jaime Correas, contam, de modo diverso, uma investigação de vinte anos que permitiu determinar que os versos eram mesmo do autor de O Aleph. “É uma história estranhíssima. Podia ser um conto de Borges”, declarou Correa quando, há alguns meses, apresentou o seu romance em Buenos Aires.

Tanto quanto foi possível determinar, o poema – que, afinal, eram cinco – saiu da gaveta de Borges na calle Maipu num dia de Setembro de 1985, pela mão de Franca Beer, a fim de serem incluídos num artigo que o marido e poeta francês Jean-Dominque Rey estava a escrever. Uma cópia foi depois entregue a Correas, que também os publicou numa revista, e, a partir de então, os versos começaram a circular em diferentes versões. María Kodama, a viúva de Borges, garantia que os poemas não tinham sido escritos pelo marido e, no meio da investigação que Faciolince encetou, surge até um vilão, Harold Alvarado Tenorio, afirmando, primeiro, que Borges lhe tinha ditado os poemas e, depois, que era ele o seu verdadeiro autor.

Num acrescento à primeira versão dos factos, Tenorio contou ainda, num artigo publicado na revista Enfocarte, que encontrou os versos dentro de um livro, na casa de uns amigos de Madrid, e que os levou a um especialista na obra de Borges, José Manuel Martell. Este ter-lhe-á garantido que haviam de ser anotações que o argentino tinha tomado nos anos sessenta, que nunca quis publicar, mas que usava como anzol sempre que aparecia alguma rapariga que lhe interessava.

“É um personagem fascinante, como o mal”, disse Faciolince sobre Tenorio, o grande responsável pelo facto de, durante tanto tempo, a autoria do poema no bolso de Faciolince-pai ter estado por determinar. Questionado agora, outra vez, sobre os motivos que terão levado o pai a meter os versos de Borges no bolso, Abad não tem dúvidas: “Levava-os como última vontade de uma pessoa que sabe que vai ser morta, é uma mensagem sobre o modo como encarou a morte” – um passo mais para o esquecimento. Vem-me à memória, por isso, um poema de Pessoa que diz quase a mesma coisa: “A morte é a curva da estrada/morrer é só não ser visto”. Também não ficava mal no bolso de um cadáver.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 2 de Agosto de 2011