segunda-feira, 4 de julho de 2011
Contar histórias*
Numa conferência que proferiu há dias nesse lugar extraordinário que há-de ser a livraria Ateneo Grand Splendid – um antigo teatro de Buenos Aires forrado de livros e, logo, de histórias, vidas, fracassos e sucessos –, o escritor argentino Abelardo Castillo declarou não saber como surgem as narrativas que conta. “Sempre estive convencido de que aquilo a que se chama imaginação é uma péssima mistura de má memória e falta de fé: acreditamos que estamos a inventar, mas limitámo-nos a recordar defeituosamente”, disse.
Dois ou três dias antes de tê-lo lido, tinha estado a conversar com uma amiga que mantém uma certa crença na capacidade humana para continuamente efabular e inventar histórias, mas desconfia da inclinação das gerações mais novas para se dedicarem à leitura de narrativas lineares, clássicas, por estarem agora adestradas na lógica atomizada da internet. Eu sou bastante menos optimista quanto à possibilidade de inventar novas histórias, mas creio que mesmo em ambientes tão dispersivos como o Facebook subsiste a ancestral predisposição do ser humano para se deixar prender por uma narrativa. É para isso que lá estão os chamados “murais” – para que seja possível reconstituir uma história, uma vida, a partir de um conjunto de frases e comentários mais ou menos avulsos.
Há, no Facebook, milhões de histórias sendo contadas e lidas ao mesmo tempo. Tal como, porém, acontece com uma boa telenovela, ou com um reality show, os enredos que ali se podem ler e subentender não são, evidentemente, literatura, ainda que possam ser, e sejam muitas vezes, pura ficção, mais ou menos verosímil conforme o talento do narrador para levar os leitores a acreditarem na mentira que lhes é contada. O mundo, ou uma parte dele, acreditou, por exemplo, que Amina al Omari era uma rapariga feliz e lésbica que escrevia um blogue, vivia na capital da Síria e aí foi até entrevistada por uma jornalista do Guardian – e, afinal, era só um norte-americano que vivia na Escócia. Do mesmo modo que, soube-se também na semana passada, Paula Brooks, a editora de um site de notícias lésbicas, era apenas Bill Graber, um trabalhador da construção civil do Ohio.
Mais do que contar uma história verdadeira, verosímil ou totalmente inventada, a literatura lida, ou deve lidar, com a verdade e não com a realidade, conforme afirmava Enrique Vila-Matas numa entrevista recente à revista Ñ. É um modo de dizer e contar, e, além disso, tal como Castillo sugere, a capacidade de recordar não recordando, a fim de permitir, ainda, que se recombinem e voltem a contar, como se de novidades se tratasse, as mesmas narrativas que, desde tempos imemoriais, mantêm o homem preso, de olhos esbugalhados, à roda da primordial fogueira. Desse constante mergulho, crê-se, hão-de resultar fracções de uma verdade profunda sobre o medo, a morte e esta coisa bela e horrível que é estar vivendo na companhia de um cérebro que cria problemas e os resolve, nem que para isso trate de inventar os deuses.
*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 14 de Junho de 2011