segunda-feira, 27 de junho de 2011

Mudemos de assunto*


Meti na cabeça que tinha que ler este ano o Ulisses de James Joyce, que andava pelas estantes lá de casa há cerca de uma década - e, afinal, consegui terminá-lo. Demorei nisto mais de dois meses, durante os quais me debati e resisti mesmo quando a minha filha me perguntava por que é que eu continuava a ler aquilo, se era assim tão difícil. A resposta: porque sendo denso e, por vezes, chato, insano, inóspito, disparatado e aborrecido, é também um livro delirante, interessante, caudaloso, rico e mirabolante, no qual a semiótica shakespeariana se cruza com as putas mais sórdidas de Dublin e com um verdadeiro manual de libertinagens e perversões.

Tinha já tentado ler o Ulisses uma vez, logo depois de tê-lo adquirido na afamada versão do brasileiro António Houaiss (a livraria que o vendeu já nem sequer existe). O romance, porém, repeliu-me muito amavelmente, sugerindo-me que talvez não fosse má ideia suspender a pretensão de entender uma obra que estava claramente acima das minhas possibilidades. Anos mais tarde, após um jantar bem bebido, acabei a declamar em voz alta as primeiras páginas do livro, esforçando-me por dar a entoação certa às tiradas de Buck Mullingan e Stephen Dedalus: “Vamos ter uma bebedeira maravilhosa de espantar os druidas druídicos”. Mas só mais de um ano depois recomecei a leitura a sério do Ulisses.

Desta vez cheguei ao romance de Joyce como se de uma decorrência natural se tratasse. Comecei o ano a ler Uma Viagem à Índia, do Gonçalo M. Tavares, cujo protagonista é uma ressurreição muito livre de Leopold Bloom, o personagem cujo dia 16 de Junho de 1904 o Ulisses acompanha. Logo a seguir saiu em Portugal a tradução de Dublinesca, o romance de Enrique Vila-Matas que é como uma visita ao imaginário de Bloom: um editor aposentado resolve ir a Dublin no dia em que, todos os anos, se festeja o Bloomsday, a fim de prestar uma última homenagem à literatura e à cultura impressa, numa época em que o digital se impõe como um novo paradigma civilizacional.

Ler o Ulisses pareceu-me, assim, a coisa mais normal do mundo, como percorrer um caminho sabendo qual é passo seguinte da viagem. Senti como imperioso conhecer na origem o senhor Bloom de Tavares, mas também o espectral personagem da gabardina mackintosh que aparece e desaparece no romance de Vila-Matas – e que, na versão de Houaiss, é só um misterioso homem de impermeável, chamado de Impermeato quase no final, antes de Molly iniciar aquele monólogo louco, longo e genial com que o livro se encerra.

Não pude, para além disso, deixar de notar que, mais ou menos a meio do livro, um dos personagens, John Wyse, se queixa de que a Irlanda iria, em breve, estar tão desmatada como Portugal. Cento e sete anos depois, estando a Irlanda e Portugal não só desmatados mas também muito irmanados nos desaires da economia, faz ainda mais sentido quando Bloom diz que “cada país, inclusive o nosso tão desgraçado, tem o governo que merece”. Sendo as coisas como são, será melhor, pois, seguir o conselho de Dedalus: “Não podemos mudar o país. Mudemos de assunto”.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 14 de Junho de 2011