segunda-feira, 9 de maio de 2011

Dentro do farol*


© Teatro Anatómico 2005 / Farol D. Maria Pia, Praia, Cabo Verde


Gosto de faróis e não sei porquê.

Costumo contar, em favor da subtil magia da ficção, uma história relacionada com o filme A Ostra e o Vento, cuja acção decorre precisamente num farol, tendo como protagonista o actor Lima Duarte, na pele de um velho faroleiro. José, o personagem, usa sempre um gorro de lã e uma camisola de gola alta. Quando perguntaram a Walter Lima Jr., o realizador, que terra era aquela, ventosa e habitada por brasileiros friorentos e muito agasalhados, ele respondeu, imagino que com um sorriso de onírica ironia, que A Ostra e o Vento acontece “no país da ficção”.

Agrada-me que o país da ficção tenha uma costa escarpada, acossada por ondas violentas. Imagino-o, muitas vezes, como a Costa da Morte, na Galiza: misterioso, semeado de bruxas e devidamente rematado por um sítio chamado Finisterra, o local onde termina a quimérica terra das histórias, fustigado por inclementes ventanias e dotado, claro, de um farol.

Uma vez, aliás, resolvi meter-me num avião e voar para os Açores enquanto estava a ler As Duas Águas do Mar, o romance do Francisco José Viegas. Estive vários dias a deambular pela ilha, um pouco ao acaso, até que, numa placa na beira da estrada que vai do Nordeste para Vila Franca do Campo, vi a indicação para o farol da Ponta do Arnel. Virei à esquerda sem pensar e mergulhei (literalmente) no assombro de uma estrada muito apertada que se afundava num abismo entre penhascos e conduzia ao sítio que vinha narrado no livro e, creio, justificava que eu tivesse ido aborrecer-me para a ilha de S. Miguel. Havia ali, junto ao farol, um sossego absoluto e uma cascata de água caindo ao mar. Pareceu-me o paraíso.

Regressei aos faróis na semana passada, conduzido indirectamente por uma das belas e cultas crónicas de Manuel Rodríguez Rivero no Babelia do El País. O caminho foi tortuoso: o texto elogiava uma autora, Menchu Gutiérrez, da qual se tinha publicado em Portugal, em 2000, A Tábua das Marés. Encomendei o livro numa livraria electrónica e fiquei dois meses à espera. Debalde. Como o mistério não se explica, recorri a um amigo do lado de lá da fronteira e, em menos de uma semana, tinha nas mãos os dois livros mais recentes de Menchu Gutiérrez. Comecei a ler, aleatoriamente, aquele que se chama El Faro por Dentro/O Farol por Dentro. E, como naquela tarde nos Açores, mergulhei no abismo psicológico de um faroleiro no limite da solidão e da loucura. Vive acompanhado por Basenji, um cão africano que nunca ladra, e por um alambique, encerrado no labirinto de um solilóquio insano e alucinado, como num pesadelo ruim.

No prólogo, Menchu escreve que “viver num farol é muito diferente de habitá-lo”. Sabe do que fala, uma vez que, como o faroleiro louco, viveu vários anos numa dessas estruturas costeiras, no Norte de Espanha. Enquanto lia o livro, passeei por mais esse farol da ficção, simultaneamente asfixiante e ancho, debruçado sobre o infinito. Só então me ocorreu que nunca vi realmente um farol por dentro.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 26 de Abril de 2011