segunda-feira, 4 de abril de 2011

Primaveris piropos*



Ontem, Dia Mundial da Poesia e da Árvore, da Floresta e das demais coisas da natureza, o jornal espanhol El País conseguiu, creio que involuntariamente, a proeza de juntar os dois assuntos num só texto jornalístico dedicado ao declínio do galanteio. Há, com efeito, poucas coisas mais poéticas e primaveris do que o piropo da anedota dos dois trolhas que, para meterem conversa com uma transeunte, deitam mão a vários recursos estilísticos para comentarem, quando ela passa, lépida e fresca, aquele lírico “inda dizem qu’as flores num andum... num andum o carago é que num andum!” (na versão censurada do mais tripeiro dos operários, evidentemente).

Como bem nota o supracitado artigo, o piropo do trolha (ou do taxista, ou do executivo engatatão) é uma tradição dos países mediterrânicos e árabes (que os portugueses, por exemplo, exportaram para o Brasil com assinalável sucesso). Contudo, com a triste agonia do galanteio soez, por via do progressivo esbatimento do machismo nas sociedades, perde-se também, conforme assinala uma catedrática espanhola, alguma coisa do subtil culto da retórica e dos jogos de palavras, da linguagem metafórica e hiperbólica que rege os melhores piropos. E elimina-se um mecanismo social que, de algum modo, permitia a comunicação entre classes distintas e, digamos assim, o convívio entre estranhos, agora tão limitado aos “gosto disto” do Facebook e quejandos.

Para as pessoas mais susceptíveis, a lisonja de andaime tem ainda um carácter agressivo, discriminatório, bárbaro e sexista, sendo um resquício de uma sociedade que maltrata e coisifica a mulher. Em certa medida e em algumas circunstâncias, é-o efectivamente. Mas também conheço muito boa gente que já se dedica a recolher piropos (como aquele subtilíssimo “que ricas pernas; a que horas abrem?”). Trata-se, creio, de um trabalho de pura etnologia. Um dia, quando o último galanteador humilde tiver desaparecido, sentiremos falta da inventividade e do colorido dos piropos, pelo menos daquilo que neles há de homenagem à poesia em movimento de uma mulher bonita caminhando pela rua de uma cidade. Veja-se, por exemplo, o caso de Garota de Ipanema, a célebre canção de Vinicius de Moraes e António Carlos Jobim, que não é senão um piropo em verso: “Olha que coisa mais linda/Mais cheia de graça...”.

Observada a linha do bom senso e do bom gosto que separa a agressão do galanteio, creio que teríamos a ganhar com a generalização igualitária do piropo. Um mundo sem discriminação de género não será aquele do qual o piropo tenha sido banido, mas aquele onde homens e mulheres o pratiquem com equanimidade. Dou um exemplo: uma noite, ao sair de um bar, uma mulher (obviamente já um pouco ébria) que estava encostada a um carro viu-me passar e portou-se “como um gajo”. Fiz como as senhoras sérias de outros tempos (que não tinham ouvidos) e segui o meu caminho, nada escandalizado com o piropo, mas constrangido, afinal, com a falta de poesia da coisa. Ela tinha dito “que giro”. Só isto - sem árvores, flores ou poesia.


*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 22 de Março de 2011