segunda-feira, 11 de abril de 2011

Economia Local*


© Teatro Anatómico 2011

Numa outra manhã qualquer talvez me ocorressem pensamentos mais festivos, mas chove com razoável intensidade e, por isso, vim para o trabalho vendo a cidade molhada pelo vidro embaciado do autocarro e recordando Dublinesca, o romance de Enrique Vila-Matas no qual cai uma chuva permanente. Lembro-me disto porque chove aqui como no livro, mas também porque Samuel Ribas, o editor aposentado que está no centro da narrativa, confessa que “sempre admirou os escritores que, cada dia, empreendem uma viagem rumo ao desconhecido e, no entanto, estão o tempo todo sentados num quarto”, em lugares de solidão absoluta; sítios como imagino que tenha sido a caverna de São Macário no alto da Serra da Arada.

Estive lá no domingo, exposto ao vento inclemente e assistindo ao pesado cortejo das nuvens sobre as enormes montanhas. Procurei imaginar o que faria um homem naquele cume, longe de tudo, talvez percorrendo os penhascos de xisto apoiado num cajado, recolhendo ervas e raízes, e pareceu-me que São Macário podia ter sido um escritor como Hölderlin e Emily Dickinson, ou como Montaigne fechado na sua torre, finalmente livre do mundo e capaz, por isso, de meditar nele e de mergulhar em zonas de profunda perplexidade. Pensei nisto e senti uma ponta de inveja e a vontade difusa de me perder também num sítio distante da crise orçamental e da campanha eleitoral em curso, das pequenas hipocrisias do quotidiano e da sensação de sufoco e desorientação, de falta de perspectivas; um ermo onde pudesse encontrar um rumo sem a confusão e todo o ruído inútil do século XXI.

Depois de ter estado no alto da Serra da Arada, de onde me pareceu que se pode contemplar o mundo sem escutar a sua insensatez, desci ao fundo da garganta sem horizontes onde está a Aldeia da Pena. É um pequeno aglomerado de casitas de xisto, a maioria em ruínas, algumas feitas de novo, onde residem permanentemente apenas oito pessoas. O lugar está num fundão rodeado de montanhas e nem sequer o vento lá chega.

Parecia o refúgio ideal para um desses escritores “que empreendem uma viagem rumo ao desconhecido”. Depois, porém, notei que também ali há automóveis e antenas parabólicas nos telhados. Na fachada de uma construção de xisto em ruínas, exibia-se um cartaz insolitamente vermelho, com um número de telefone e a palavra “VENDE-SE”, como em qualquer subúrbio atingido pela crise do subprime. Na “adega típica” da qual dependem mais de metade dos habitantes, o café custa setenta cêntimos e, de repente, pareceu-me que ninguém pode morar ali e, ao mesmo tempo, estar longe do mundo, apesar das galinhas que correm a esconder-se dos visitantes e da ausência de gente nas ruelas. Chove na aldeia como no livro de Vila-Matas, mas já não me parece aconselhável perder-me na Pena, quanto mais não seja porque oito pessoas são sempre uma multidão e nem ali evito a memória funesta do paleio dos economistas. Compro, por isso, um frasco de mel. É a minha modesta contribuição para impulsionar a economia local.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 29 de Março de 2011