segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Viver sem açúcar

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 14 de Dezembro de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



A fazer fé nas notícias dos últimos dias, existe um problema com o abastecimento de açúcar à população. O caso tem sido tratado de um modo ligeiro, como se fosse um fait-divers da quadra natalícia, mas inquieta-me um pouco que ninguém tenha aproveitado para interrogar o primeiro-ministro relativamente a um assunto desta gravidade. Também ainda não se confrontou o Presidente da República, ou os candidatos à sua sucessão, com os riscos potenciais que a carência de açúcar acarreta para a felicidade geral da nação. Já quase todos se declararam, como convém, preocupados com a pobreza, a fome e as injustiças sociais em geral, mas ainda ninguém percebeu bem o barril de pólvora que isto é. Não haver pão é um problema, claro, mas não é menos grave que as pessoas sejam capazes de perceberem o que lhes falta e o que lhes vai sendo surripiado.

As coisas doces, sabe-se, são uma das drogas de que os mais desfavorecidos se socorrem para entorpecerem os sentidos. Ingerem-se açúcares e o organismo produz serotonina, a qual, actuando sobre certas partes do cérebro, anestesia as dores, a depressão e a ansiedade, induzindo uma sensação de bem-estar, de euforia e até de felicidade. Dito assim, parece a receita ideal para enfrentar o Inverno, os dias escuros e as manhãs chuvosas. Mas o açúcar também é essencial para aumentar a produtividade e para ajudar os cidadãos a atravessarem uma conjuntura económico-social particularmente desfavorável.

Não se sabe para quantos desaires, desilusões e coisas ruins ainda estaremos guardados, mas é quase certo que tudo nos vai parecer mais negro sem, ao menos, o conforto de uma rabanada polvilhada de açúcar, uma fatia de bolo ou, vá lá, uma porção de ovos-moles embrulhada em massa de hóstia. Há, evidentemente, as últimas eliminatórias dos Ídolos, as derradeiras expulsões da Casa dos Segredos, os enlaces romanescos do Mar de Paixão, a esperançosa quimera do dinheiro fácil do Euromilhões e do Quem quer ser milionário, e as fabulosas campanhas promocionais das operadoras de telecomunicações. Mas, no estado em que isto está, é capaz de ser excessivo confiar cegamente nas drogas audiovisuais para manterem o povo sereno.

Ontem, à hora de almoço, circulavam informações contraditórias sobre a falta de açúcar no mercado. As mais optimistas indicavam que os stocks já estavam a ser repostos, mas falta saber se o doce granulado ainda virá a tempo de evitar a rebelião. Eu bem vi, numa das reportagens da televisão, um ancião que, à saída do hipermercado, estava visivelmente transtornado com a falta de açúcar. Posto perante uma repórter que se gabava de ter acabado de comprar dois quilos (inteirinhos), ele, tenso e invejoso, perguntou onde tinha ocorrido o milagre, aparentemente disposto a correr para lá, como um celerado esquecido das artroses. A jornalista, altiva e desdenhosa, informou-o de que tinha feito a compra ali mesmo. E o bom homem olhou-a com um ricto no qual se pressentia a raiva, a luta de classes, o desespero e outros traços amargos da privação de açúcar.