sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Uma tarde cheia de Cabo Verde

(crónica da coluna "Crioulizado" desta quinzena para o jornal A Nação, de Cabo Verde)

Não sei se é Cabo Verde que me persegue ou se sou eu que estou sempre atento a estes mínimos pormenores e às deliciosas coincidências que me vão permitindo manter esta crónica viva, mas foi assim: uma tarde destas, estando eu em casa a tentar fazer literatura ao som de Bau, lembrei-me de que ainda me faltava comprar um presente de Natal. Já tinha decidido que compraria “ Lus”, de Nancy Vieira, para oferecer à Olga (o Carlos recebeu o romance do Mário Lúcio Sousa, “O Novíssimo Testamento”, que é um presente igualmente supimpa), mas, para isso, precisava de sair de casa e de me meter numa dessas confusões de gente, filas e sacos de compras que, pelos vistos, é o Natal. Como, em todo o caso, estava a precisar de um café e de caminhar um pouco para aquecer os pés, meti-me no autocarro e lá fui em busca do último presente.

Cumprida a espinhosa missão, fiquei a dar umas voltas pela Baixa, mas por aquela parte da Baixa onde não anda toda a gente atarefada com as compras e que até parece quase deserta com as universidade encerradas para férias. Já tinha anoitecido e, como escreveu o poeta Cesário Verde, havia naquela parte da cidade uma tal soturnidade, uma tal melancolia, que eu resolvi entrar no café do costume para uma meia-de-leite e uma torrada, crente de que nada como ter a barriga forrada para afastar o spleen.

Tinha, pois, o CD da Nancy Vieira num saquinho de plástico e entrei no café — o mesmo sítio onde tinha estado, algumas noites antes, com o actor Flávio Hamilton, na ressaca de uma feijoada e de uns cálices de pontche meloso. O Flávio, desta vez, não estava, mas, em sua vez, ouvi a voz e a guitarra do Bilan flutuando na sala em lusco-fusco, uma melodia muito doce que, daí a nada, deu lugar a “Papa Juquim Paris”, aquela mesma canção que foi, para mim, a porta de entrada na música do Bilan, há quase um ano atrás.

Encantado com a coincidência, telefonei ao Bilan para poder dizer “manera, tud dretu?”, e depois, regressado ao ar frio da cidade, fui atento às pessoas do metro para ver se havia algum cabo-verdiano (creio que sim, uma mãe com dois filhos, mas não ousei falar-lhes). Por fim telefonei também para a Yasmin, com quem não falava há tanto tempo, para saber novidades dela na minha terra e para ouvi-la dizer aquele “fica dret” ao qual eu já sei responder “bo també”.