segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O Rio sem Zumbi

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 30 de Novembro de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



“Os helicópteros surgem, rodeando o morro, como negros marimbondos enfurecidos”. A descrição podia pertencer a algum dos filminhos gravados durante o último fim-de-semana com sofisticados telemóveis, e logo postos a circular na internet a partir de alguma casa do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, durante a ofensiva policial e militar que tomou conta da favela e dos noticiários. A frase, porém, está escrita no romance O ano em que Zumbi tomou o Rio, do angolano José Eduardo Agualusa, que imaginou a guerra civil na cidade maravilhosa com alguns anos de antecedência (o livro foi publicado em Abril de 2002).

Entre a ficção e a realidade, há inúmeros pontos de contacto e outras tantas diferenças. Agualusa imaginou que, em pleno século XXI, Francisco Palmares, o Zumbi, encarna a herança revolucionária do célebre herói antiesclavagista do século XVII e encabeça a revolta dos morros pobres contra a opulência da cidade rica, o asfalto. Na literatura, o confronto tem motivações políticas e sociais, como numa revolução socialista, sendo, todavia, suportado pelo dinheiro e pelas armas dos líderes do tráfico de droga. Na realidade, as autoridades tomaram as favelas de assalto para recuperar o controlo de uma parte do território em que o Estado tinha deixado de mandar (o Mundial de Futebol e os Jogos Olímpicos a isso obrigam). Os moradores do morro receberam os tanques com alívio, como um povo libertado após anos sob a tirania dos bandos de traficantes.

No ponto mais alto do Complexo do Alemão, a polícia hasteou a bandeira do Brasil (“ordem e progresso”) e exibiu as luxuosas mansões dos líderes do tráfico, com deliciosas piscinas de água azul debaixo do amistoso sol do Rio. A realidade não abre brechas por onde penetre a bondade libertária da ficção. Os líderes da favela são tão ou mais ricos, tão ou mais opulentos e corruptos, tão ou mais brutais e opressivos do que os chefes do asfalto. Ou, como diz um dos personagens do livro de Agualusa, os muadiês do morro não têm consciência política. Aí se extingue a utopia e sobre o Rio desce a normalidade do quotidiano.

Na realidade, não houve uma coluna de blindados avançando pesadamente pela Avenida Vieira Souto, diante do mar de Ipanema. Uma reportagem publicada no Diário de Notícias de domingo relatava que os surfistas continuavam cavalgando as ondas, os corpos dourados ainda estavam crestando ao sol, indiferentes à guerra civil que, decorrendo naquela mesma cidade, era, afinal, uma coisa de outra cidade, de um outro mundo. Os turistas tomavam água de coco nas esplanadas e Mónica Marques, a escritora portuguesa que ali vive há dez anos, explicava que estava calmamente instalada na praia do Leblon, como se nada fosse. “Tenho estado sempre na night sem problemas, a curtir o Rio”.

Nos morros do imenso país que vai do Oiapoque ao Chuí, dezenas de milhões de brasileiros não poderão dizer o mesmo (e já foi pior). Vão continuar a ser gente de segunda (ou de terceira), sem possibilidade de curtir quase nada. Mas também ali a revolução não é para já.