(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 16 de Novembro de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)
Indivíduos mais clarividentes do que eu andam há um ror de tempo a anunciar o fim do livro enquanto objecto feito de papel e tinta, bem como a sua substituição por um dispositivo electrónico no qual se podem armazenar vários milhares ou milhões de ficheiros destinados à leitura, seja de poesia, ensaio, ficção, literatura técnica ou simples lixo. Sou perfeitamente capaz de admitir que o aparelho há-de ser bestialmente prático para pessoas sobredotadas, mas, para sujeitos limitados como eu, capazes de lerem apenas um livro de cada vez, e devagarinho, as novas tecnologias de leitura afiguram-se ainda um pouco estrambólicas.
Até há bem pouco tempo, estive inclusivamente convencido de que os e-readers pertenciam ao domínio da ficção científica, como os tubos de teletransporte, as viagens a Marte, a deslocação entre diferentes dimensões do espaço-tempo ou o Orgasmatron inventado por Woody Allen para o filme O Herói do Ano 2000. Mas depois vi claramente vista uma moça gordita a ler um livro electrónico na estação do metro da Trindade e convenci-me de que o futuro tinha, enfim, chegado.
Um pouco desnorteado pela novidade, quis sinceramente acreditar que a simples existência daquela rapariga justificaria os milhões de palavras que este jornal tem dedicado ao e-book. Acresce que alguém mais viajado se encarregou de me sossegar, garantindo que em Nova Iorque anda toda a gente com um e-reader na rua. Se a memória não me falha, aconteceu algo parecido com os tamagochi, os amorosos animais electrónicos que era preciso alimentar e tratar carregando em botões.
Sendo tão bota-de-elástico como qualquer pessoa que envelhece, estou convencido, ainda assim, de que o livro electrónico é um produto comercialmente muito mais promissor e viável do que eram os tamagochi. A possibilidade de ter toda uma biblioteca dentro de uma bolacha electrónica é seguramente muito interessante para qualquer indivíduo que não aprecie a companhia quieta de centenas de livros já lidos, amarelecendo em silêncio e cobrindo-se melancolicamente de pó.
O sol, escreveu Pessoa, “doira sem literatura”, e “o rio corre, bem ou mal, sem edição original”, pelo que não há nenhum motivo válido para que as pessoas ainda se enterneçam com certas mariquices antiquadas. Este fim-de-semana, por exemplo, alguns maduros paleolíticos andaram a espalhar trinta mil livros pelas ruas de Madrid, acreditando romanticamente nessa patetice segundo a qual há uma certa magia no encontro que se estabelece entre um leitor e o livro que, algures, o espera. Em Bragança, andam a fazer o mesmo pelos cafés do distrito, abandonando livros para que alguém os ache e leia. Mas é tudo uma enorme perda de tempo.
Segundo já profetizou um inteligente, “a literatura não é feita de papel” e, portanto, não há-de faltar muito para que seja possível fazer download de vários milhões de terabytes literários directamente para o cérebro, previamente dotado de uma tomada USB biocompatível. Com o interface adequado, será mesmo possível dispensar-se, um dia, a maçada de aprender a ler.