(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 26 de Outubro de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)
Há livros cuja leitura podia ter sido capaz de evitar a consumação de alguns grandes transtornos. Não me refiro, todavia, aos livros óbvios, sejam os grandes tratados de economia política (ou política económica, não sei bem) ou os risíveis manuais de auto-ajuda. Estou até a pensar num romance que suponho ter sido ainda pouco lido em Portugal, na medida em que só muito recentemente foi traduzido e editado entre nós; estou a pensar em Os peixes também sabem cantar, publicado pelo islandês Halldór Laxness em 1957, dois anos depois de ter ganho o Prémio Nobel da Literatura.
De Halldór Laxness já aqui se tinha publicado o extraordinário Gente Independente, que conta a história de uma família islandesa que vive mais ou menos isolada e, por isso, fica exposta aos rigores da meteorologia e à crueldade mais desarmante. É um romance para ler na primeira oportunidade, ainda que, no complexo tempo em que vivemos, Os peixes também sabem cantar pareça encerrar lições mais valiosas.
Refiro-me, concretamente, à peculiar educação dada a Álfgrímur, narrador e neto de Björn de Brekkukot, o qual cultiva uma forma de apreciar o dinheiro “completamente diferente da dos valores bancários normais”. Se não fosse por mais nada, isto seria suficiente para simpatizar imediatamente com Björn de Brekkukot. Afinal, o défice que vamos ter que pagar nos próximos anos, bem como a bancarrota em que a Islândia se encontra mergulhada (ou a Irlanda, ou...), são uma decorrência dos tais “valores bancários” e de todo o sistema socio-político-financeiro criado à sua volta (ouvi Francisco Louçã dizer, um dia destes, que o nosso défice excessivo é equivalente ao dinheiro que o Estado português injectou no BPN para evitar a falência da instituição, mas é possível que o líder do BE estivesse a exagerar; a oposição é geralmente muito mal intencionada).
Logo no início do romance, Álfgrímur explica que Björn de Brekkukot, sendo pescador, não faz o preço do peixe variar segundo a lei da oferta e da procura. Mantém, por isso, o preço sempre estável, mesmo que lhe ofereçam o dobro ou o triplo pelo peixe que leva no carrinho de mão. Também não baixa o preço quando os outros pescadores, em época de abundância, vendem o peixe mais barato. “Ao agir desta forma, o meu avô Björn de Brekkukot rejeitou todas as regras fundamentais da economia”, nota Álfgrímur, o qual acrescenta que, ainda assim, os clientes acreditam que o peixe de Björn é melhor do que o dos outros pescadores e o compram mesmo quando ele o vende mais caro.
Não terminei ainda de ler o livro e não sei, no dia em que escrevo esta crónica, como termina a história de Björn de Brekkukot e Álfgrímur, ou qual o resultado daquela aversão às “regras fundamentais da economia”. Tal como a generalidade dos portugueses e dos islandeses, estou apenas convencido de que o convívio ameno e prolongado com a variação do preço do peixe fará com que os próximos tempos se assemelhem bastante a um sombrio dia de Inverno em Reiquejavique.