(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 21 de Setembro de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)
Um gajo sabe que está razoavelmente destrambelhado quando, sendo segunda-feira, acorda muito antes de o despertador tocar e já com os neurónios concentrados na tarefa de escrever esta crónica. É, bem entendido, uma ocorrência razoavelmente estúpida, na medida em que equivale a levar trabalho para casa sem, na verdade, poder demonstrar que se esteve a trabalhar em casa: não há dossiês pesados para transportar ou calhamaços para consultar, nenhum labor visível; apenas a incomodidade de não ter ainda decidido o assunto que há-de preencher um determinado espaço numa página de jornal. Acordo, pois, convencido de que é o primeiro dia de Abril e que, por isso, o tema da crónica se apresenta bastante óbvio: devo escrever sobre a mentira, sobre as várias faces da mentira, mas, daí a um instante, já razoavelmente desperto, entro na casa de banho e tomo consciência de que não é Abril, de que ainda é Setembro e que, afinal, havia estado a sonhar com trabalho, o que é ainda mais estúpido do que levar trabalho para casa. Volto para a cama, a minha filha bate na porta para me perguntar se está tudo bem (minto e digo que sim), mas já não sou capaz de voltar a dormir. Dali a três quartos de hora o despertador acabaria por tocar e eu ainda não tinha decidido sobre o que seria esta crónica, o que me arrelia bastante, pois gosto de ter isso decidido com alguma antecedência para não ter que enfrentar a angústia da página em branco quando chegar à redacção. O mundo está cheio de milhões de histórias, casos e assuntos susceptíveis de fornecer matéria para, pelo menos, um texto sofrível e enxuto, mas escolher um tema implica abandonar os outros e isto constitui sempre uma espécie de traição do real. Nunca se pode ter a certeza de ter escolhido com acerto, mas também é manifestamente impossível meter o mundo todo em três mil caracteres de uma página de jornal. Como se esta angústia não fosse já suficiente, alguns dos poucos leitores deste espaço fazem agora questão de me sugerir assuntos, que tenho que escrever sobre isto ou aquilo, que uma determinada história envolvendo um saco de dinheiro da Reserva Federal norte-americana daria uma boa crónica, e eu ainda sou insensato ao ponto de me deixar sugestionar por um texto de Julio Cortázar, recordando-me de um passarito minúsculo que costumava passar as manhãs bicando o seu próprio reflexo no vidro de uma das janelas da antiga redacção do jornal, exactamente como o pássaro-narciso da crónica de Cortázar. Ocorre-me ainda que havia passado a semana a reunir outras ideias, mas, ali na cama, não conseguia lembrar-me de nenhuma. Aproximava-se, em todo o caso, a hora de acordar e eu tinha ainda a crónica às voltas na cabeça, chocando com as paredes do cérebro como um par de sapatilhas sujas no tambor da máquina de lavar roupa. Logo depois o despertador toca, ouço que cinco mil desempregados vão perder o subsídio de desemprego até ao final do ano e penso que isto provavelmente daria uma crónica como deve ser. Mas já não havia tempo. Estava na hora de me levantar para vir para o trabalho.