(crónica da coluna "Crioulizado" desta quinzena para o jornal A Nação, de Cabo Verde)
O que é um livro? Pode ser uma viagem. Embarca-se na primeira página e vai-se por ali fora à procura do fim do caminho. Não raro, porém, a caminhada abre-se numa bifurcação que ilumina novas aventuras – foi o que me sucedeu enquanto lia “Os Trinta Dias do Homem Mais Pobre do Mundo”, do Mário Lúcio Sousa, que está agora em Portugal para lançar o CD “Kreol” e o torrencial e brilhante romance que é “O Novíssimo Testamento”, editado pela D. Quixote.
Seguia, pois, o amoroso tráfico do licenciado e de Maria Cuenca Cuenca nos escondidos do Tarrafal quando dei com o nome de Paul Gonsalves, saxofonista tenor da banda de Duke Ellington. Seria gente de verdade ou ficção do Mário Lúcio? Fui investigar e achei. Existiu de verdade esse crioulo de bigodinho que também tocou nas bandas de Count Basie e Dyzzy Gillespie, e que veio a morrer a 15 de Maio de 1974, em Londres, apenas alguns dias antes de que também o Duke se finasse, a 24.
Extraordinária história! De acordo com a biografia que há na Wikipedia, Paul Gonsalves ganhou de Ellington a alcunha de The Stolling Violins (algo como “os violinos errantes”), por ter o hábito e o virtuosismo de tocar longos e complexos solos enquanto caminhava entre o público. Mário Lúcio conta ainda que Paul Gonsalves acabou por ser afastado da banda de Duke “devido ao seu incorrigível apego à aguardente”, elemento que facilmente ajudaria a compor, ao menos, uma personagem com a tessitura, se não de um Bird, ao menos equiparável à do velho saxofonista que dá corpo à ficção de “Round Midnight”, o encantador filme de Bertrand Tavernier bebido da biografia de Dexter Gordon (mas que sempre me pareceu ter sido inspirado no sobre-humano conto de Julio Cortázar que é “El Perseguidor”).
Terminei, pois, de ler “Os Trinta Dias do Homem Mais Pobre do Mundo”, mas a minha cabeça já andava longe, perseguindo com a imaginação a memória desse Paul Gonsalves filho de cabo-verdianos e músico de excepção entre os melhores do seu tempo. Os pais de Paul, parece, pediam-lhe, às vezes, quando era menino, que tocasse velhas canções do folclore português. Talvez o Duke tenha escutado alguma dessas melodias e, em certas noites de borga maior, acabasse brindado com cálices de grogue de Santo Antão. Mas isto talvez seja já uma outra história.