segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Nobre povo e tal

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 7 de Setembro de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



Um dos títulos do Diário de Notícias de ontem informava que os amantes do abate recreativo de animais pretendem voltar a perpetrar uma arreigada tradição cultural de Monsaraz: matar um touro na antiga praça de armas do castelo alentejano, património nacional, convenientemente transformado, nesta altura do ano, em arena tauromáquica informal. Para tal, os folcloristas locais propõem-se ignorar a proibição imposta pela Inspecção-Geral das Actividades Culturais, evidente inimiga da cultura pátria.

De acordo com a notícia, a pitoresca tradição, que se cumprirá no próximo sábado, conta com a bênção da selectivamente piedosa Santa Casa da Misericórdia de Monsaraz e com o apoio da autarquia. A despeito das disposições legais e da coragem dos prevaricadores, a estocada final costuma ser desferida sob a protecção de “um enorme pano estendido à largura da praça para evitar que o autor seja identificado pela GNR”. Os guardas, inocentes e distraídos, são todos os anos surpreendidos pela engenhosa manobra de ocultação e nunca lhes terá ocorrido juntarem-se à ululante multidão que se esconde debaixo do pano. Consequentemente, ninguém é penalizado.

Excluindo certos pormenores perfeitamente negligenciáveis, como o derramamento de sangue bovino, a matança de Monsaraz não é um fenómeno tão local como parece. Trata-se, isso sim, da manifestação pontual de uma tradição mais vasta e arreigadamente portuguesa. As leis, entre nós, não são escritas para serem respeitadas, mas para serem contornadas, dribladas e escarnecidas nas barbas das instituições, enquanto uma multidão entusiasmada grita olés. O próprio Estado se encarrega de dar o exemplo e de estimular a balbúrdia.

Qualquer português médio sabe que o bom cidadão não é aquele que cumpre as regras; é, antes, o que estaciona em cima do passeio e em segunda fila, que constrói sem licença, que engana o fisco e que saca subsídios ao Estado. Vale praticamente tudo e é conveniente que a prevaricação seja abundante e permanente – para que seja impraticável zelar pelo cumprimento de todas as regras e penalizar todos os criminosos. Como em Monsaraz, o Estado cumpre o seu dever e trata de manter as aparências: proíbe e olha para o lado; e fiscaliza selectivamente. É, por exemplo, perfeitamente capaz de detectar os ociosos do rendimento mínimo, mas, tal como foi noticiado na semana passada, não consegue avistar os discretíssimos (e naturalmente elegantes) sinais exteriores de riqueza de alguns portugueses muito prósperos, cujas milionárias dívidas ao Estado acabam por perscrever.

Existem, evidentemente, alguns portugueses bem-educados e cumpridores. Sabem que até um carro mal estacionado acaba por prejudicar alguém e que as suas fintas fiscais serão, tarde ou cedo, pagas por todos os outros. São, estes portugueses, indivíduos bastante estúpidos. Estão na base da cadeia alimentar da pátria e, sendo a pátria o que é, não andará muito distante o dia em que estarão a sustentar sozinhos a vida de todos os outros.