(texto publicado na Time Out Porto de Outubro, já nas bancas; vem com uma fotografia excelente para afastar as formigas das latas do açúcar)
Se as palavras e as frases fossem como plantas de jardim e necessitassem de cuidados quotidianos, de serem regadas e podadas, se precisassem de doses regulares de sol e de chuva, o eventual jardim que calhasse ter sido entregue à minha guarda estaria, muito provavelmente, seco e estiolado, ao abandono, tomado pelas ervas daninhas, pelo mato selvagem. Talvez, na verdade, estejam também assim as páginas que eu escrevo cada vez mais irregularmente - agora que um certo cansaço de apoderou de mim e, muitas vezes, não seja já capaz de me convencer de que vale a pena cuidar das plantas de canteiros que ninguém verá, de frases que quase ninguém vai ler.
Escrevo, enquanto jornalista, todos os dias, se calhar por simples deformação profissional, por obrigação, como um lixeiro que sai à noite para recolher a porcaria dos outros. Quando, depois, chego a casa e as tarefas domésticas se extinguem, faço cada vez menos aquilo que antes gostava de fazer: sentar-me, abrir o computador e escrever uma coisa que aspirava a ser literatura e que talvez o fosse; ficar ali até serem horas de dormir, tentando uma escrita que não fosse a mesma escrita burocrática que praticava durante o dia, que inventasse vidas e pessoas, mundos.
Foi-se extinguindo, creio, o entusiasmo que, antes, me fazia ignorar o cansaço. Talvez esteja a ficar velho, ou apenas descrente de quase tudo, como se soubesse que as eventuais vidas que possam sair-me dos dedos não chegarão jamais a ser vidas completas, inteiras, e que, por defeito meu, estão inevitavelmente condenadas a serem efémeras e algo toscas, como gente mal nascida. Se uma frase, às vezes, ainda me assalta, se me desassossega e volta a fazer sonhar, tento guardá-la escrevendo-a em pequenos cadernos, entre as suas folhas, como certos botânicos fazem com os espécimes vegetais, depositando-as entre páginas para que sequem e, assim, se preservem. Faço-o, sobretudo, porque a memória me trai cada vez mais frequentemente e temo, assim, não ser capaz de recordar-me amanhã de como eram as cores e o cheio de uma frase. E, às vezes, dessas sementes deixadas ao acaso, ainda calha brotar um livro.