(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 24 de Agosto de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)
Serge Gainsbourg, o actor e cantor francês, não é um ícone do meu tempo. Ou fui eu que nasci demasiado tarde, ou ele cedo demais, mas não coincidimos em parte nenhuma, excepto em algum eventual vídeo do Youtube. Sempre me surpreende, então, que um homem tão feio tivesse conseguido conquistar algumas das mais espantosas mulheres do seu tempo, de Brigitte Bardot a Jane Birkin, mas - sou perfeitamente capaz de reconhecê-lo - trata-se de um tipo bastante primário de inveja.
Penso em Gainsbourg e ocorre-me sempre a lamentável entrevista no Canal+ em que o cantor desgrenhado e aparentemente ébrio aproveita para chamar “puta” e “nojenta” a Catherine Ringer, uma artista que escolheu a pornografia como modo de expressão. Ela reclama que o seu trabalho é parte da “aventura moderna”, mas Serge, que cantou o álcool, as mulheres e a promiscuidade, protesta e diz que a aventura moderna não tem nada a ver com a actividade de Catherine. “Nós temos uma ética”, garante, provavelmente convencido de que isso faria alguma diferença.
Cada qual terá as suas contradições e Serge Gainsbourg tinha as dele. E nem isso impede que, em Paris, os seus sítios sejam ainda hoje objecto de uma espécie de peregrinação turística por parte dos fãs. Visitam o liceu que frequentou, os bares onde actuou, a sua ponte favorita (a Pont des Arts, de onde quis que a sua primeira mulher, Elizabeth Levistky, se lançasse para o Sena como prova de amor), o quarto onde compôs Je t’aime... moi non plus e também a casa do número 5 da Rue de Verneuil, no bairro de Saint Germain, próximo da praça Furstenberg.
Nunca ali estive, mas sei que Serge Gainsbourg comprou o apartamento da Rue de Verneuil no início do seu romance com Brigitte Bardot e que o decorou em tons escuros, negros. Por coincidência, ou não, a BB regressou pouco tempo depois para os braços do marido e o cantor transformou a casa numa espécie de museu desse amor despedaçado, forrando as paredes com fotografias da (então) loira e curvilínea actriz.
A porta no número 5 da Rue de Verneuil, creio, encontra-se normalmente fechada, o que não é suficiente para desmobilizar os fãs, que ali se encontram para escrever mensagens nas paredes e para cultuar a suposta obscura maldição da casa (também próxima do ninho de outro amor mítico e conturbado, o de Salvador Dalí e Gala). Conheço aquele pedaço de Paris apenas por tê-lo visto numa fotografia recentemente publicada num suplemento de viagens: uma fachada conspurcada por milhares de traços de tinta sobrepostos, tão feia e anónima como um prédio qualquer numa grande cidade portuguesa que tenha sido objecto de um ataque de selváticos adeptos dos graffiti.
Não me custa imaginar que cada um dos fãs que ali deixaram a sua marca tenha sido movido pela melhor das intenções, eventualmente tocado pela tal ética que obrigava os iluminados da aventura moderna (e, suponho, os seus adeptos). O resultado, porém, é um verdadeiro pesadelo. Pura pornografia visual. Catherine Ringer não seria capaz de o fazer tão mal.