(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 6 de Julho de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)
Os tempos correm de feição para os paradoxos, ao ponto de o jornal italiano Corriere della Sera estar a promover um concurso via SMS de frases paradoxais. É possível, porém, que a nenhum dos participantes da iniciativa tenha ocorrido explorar o facto de, na semana passada, uma gravura de Pablo Picasso, Le Repas Frugal, ter sido vendida, em Paris, por 720.750 euros, um valor muito acima das expectativas da casa de leilões Sotheby’s. São vários paradoxos num só.
Le Repas Frugal, explique-se, é uma obra litográfica de 1904, com 61 por 44 centímetros, a preto-e-branco, da qual foram impressos mais de 250 exemplares até 1913. Mostra um casal humilde diante de uma mesa onde estão dois copos, uma garrafa, um prato vazio e um naco de pão. Os dedos do homem e da mulher são finíssimos e longos, e os seus olhares melancólicos e tristes – olhos de trabalhador sem trabalho.
Uma gravura da primeira série, mais rara, tinha já sido vendida, em 2004, por 1,4 milhões de dólares, mas o exemplar agora leiloado em Paris, pertencente à mítica colecção do marchand Ambroise Vollard, estava avaliado entre os 250 e os 400 mil euros. O valor da transacção acabou, pois, por surpreender os especialistas, o que constitui, em si mesmo, um paradoxo, ainda assim menos extravagante do que aquele que há no facto de, no meio de uma grande crise económica, continuarem a ser batidos recordes no valor de venda de obras de arte.
Na semana que precedeu o leilão de Paris, uma outra venda, em Londres, atingira um valor total de 135,3 milhões de euros, com um único auto-retrato de Edouard Manet a chegar aos 27 milhões. Todos os dias escutamos relatos de situações de penúria, desemprego generalizado, falta de liquidez e corrida aos bancos de ajuda alimentar, mas, ao mesmo tempo, o dinheiro parece jorrar de inesgotáveis cornucópias, possibilitando fantasiosos negócios concretizados por quantias inimagináveis. Chega, por isso, a ser difícil decidir se é mais paradoxal que uma empresa de telecomunicações de uma economia em crise ofereça 7,15 mil milhões de euros por metade de outra empresa de telecomunicações, ou se o verdadeiro paradoxo reside no facto de o Governo de um outro país em crise impedir aquela transacção.
As contradições podem, ainda assim, tornar-se um pouco mais subtis, desde logo quando exista quem pague 720 mil euros por uma gravura mostrando um casal famélico e melancólico diante de uma frugal refeição de três vinténs. Faltará, talvez, que o milionário proprietário deste exemplar do Le Repas Frugal o pendure na sala de jantar de um apartamento de luxo ou de uma mansão. Suponha-se e imagine-se, pois, o triste e mal alimentado casal de Picasso presidindo doravante, do alto de uma moldura de madeira exótica, a sumptuosas refeições de champanhe e caviar, servidas em toalhas de linho, taças de cristal e talheres de prata. Diante das personagens da gravura, como de milhões de outras pessoas, continuará havendo, porém, apenas um prato vazio e um naco de pão. Se isto não é um paradoxo...