(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 15 de Junho de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)
Num texto de 1965, o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini escreveu que o futebol é um sistema de signos e, portanto, uma linguagem autónoma. Cada um dos vinte e dois jogadores em campo expressa-se tocando a bola com os pés e criando uma infinidade de palavras a partir de um conjunto de unidades mínimas (Pasolini chama-lhe “podemas”, por analogia com os fonemas). Os adeptos, conhecedores do código desta linguagem, entendem perfeitamente o que é dito, seja quando os futebolistas falam como oráculos iluminados, seja quando se atrapalham, gaguejam e tartamudeiam.
Ainda de acordo com Pasolini, os jogadores dividem-se em duas grandes categorias, a dos prosadores e a dos poetas. Os povos europeus, como o italiano e o alemão, são mais propensos à prosa realista, enquanto os latino-americanos são os cultores do futebol-poesia. E “o melhor marcador de um campeonato é sempre o melhor poeta do ano”, declarou o realizador, eventualmente recordando Pelé.
Como, de 1965 para cá, o mundo se alterou de forma bastante substancial, creio que hoje ninguém se arriscará a estabelecer fronteiras tão rígidas entre as diversas correntes literárias do pontapé na bola. O futebol europeu está irrevogavelmente contaminado pela delirante poesia de fantasiosos prosadores de origem sul-americana e africana. E o poético escrete brasileiro tende, às vezes, a apresentar-se com um burocrático fato escuro, carregando uma pasta na mão e com o olhar tão perdido e realista como o de um londrino de chapéu de coco esperando o metro em Bond Street.
A acreditar no que diz Pasolini, os jogadores de futebol serão, pois, capazes de, com os pés e uma bola, criar metáforas, hipérboles, metonímias, catacreses e aliterações, e de escrever páginas inesquecíveis. Quando arranca driblando meia equipa adversária e termina a frase deitando o guarda-redes e marcando golo, o argentino Lionel Messi não é menos brilhante do que Julio Cortázar quando escreve um daqueles discursos parabólicos e cheios de palavras acabadas de inventar, fresquíssimas e palpitantes como hidromúrias e ambónios selvagens.
Assim sendo, dificilmente se percebe que os futebolistas insistam em expressar-se numa linguagem que não dominam - como o Português falado, por exemplo. Podem, por esta via, dar origem a anedotas hilariantes, como as que constam do livro 30 Anos de Mau Futebol, de João Pombeiro ( “vocês os dois façam um triângulo”), ou frases tão ocas e irrelevantes como aquelas que Cristiano Ronaldo, um inspirado operário da poesia, proferiu na conferência de imprensa do passado domingo em Magaliesburg, na África do Sul (“deus sabe quem trabalha”, “quero explodir neste mundial” e “não gosto de explodir só uma vez”). Disse ainda Cristiano que “os golos são como o ketchup: quando aparecem vêm todos de uma vez”. É, evidentemente, uma frase capaz de excitar jornalistas, mas que não significa nada. As embalagens top down, sempre prontas a disparar molho de tomate, foram inventadas há vários anos e é só disso que a selecção portuguesa necessita: mais ketchup e menos conversa.