segunda-feira, 28 de junho de 2010

Uma noite com ciganos

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 1 de Junho de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



Fotografia de Adriano Miranda


Somos perfeitamente capazes de gostar dos ciganos de Emir Kusturica, mas temos medo (ou desconfiamos) dos ciganos que venham bater-nos à porta. Ainda assim, arrastado pelos meus filhos, passei a noite de sábado num bairro de barracas de madeira. Entrei nas casas deles, ouvi o seu modo estranho de falar (dizem “mira” em vez de “olha”) e invejei o brilho imaculado dos tachos e das panelas, a rigorosa organização dos cobertores e das malgas.

Pude fazer estas coisas graças a Baralha, um projecto de Marco Martins para o festival Imaginarius de Santa Maria da Feira. Durante vários meses, a equipa do realizador de Alice andou pelo bairro cigano de Sanguedo, colhendo depoimentos e ministrando workshops. No fim, durante três noites, a comunidade da Baralha abriu as portas aos forasteiros que quisessem ir ver o bairro transformado numa espécie de instalação artística.

As casas dos ciganos estão alinhadas ao longo de uma pequena rua, no cimo da qual uma grande tela mostrava o monólogo de um homem que falava em Romani da sua pistola, com legendas e tudo. Parecia um velho cinema ao ar livre. Pelo meio, a actriz Beatriz Batarda fumava e tocava acordeão entre as fundações de uma casa mal começada. Dizia um texto em que se misturavam o preconceito e a curiosidade dos filhos dela relativamente aos ciganos (“eles são muito porcos, mãe?”) e a curiosidade e o preconceito das crianças ciganas sobre o mundo dos outros.

Depois entrava-se numa mata escura, entre cujos eucaliptos estavam mais telas gigantes transmitindo filmes que Marco Martins e Clara Andermatt rodaram na Baralha. O efeito era mágico e fantasmagórico ao mesmo tempo, semelhante a um mergulho numa dimensão estranha na qual se misturavam a luz e a escuridão, o silêncio e o murmúrio das vozes das pessoas nas telas.

Mais adiante, numa clareira, um círculo de pessoas desenhava o palco onde Israel, o adolescente de cabelos longos e argola na orelha, cantava músicas ciganas. As letras pareceram-me iguais às da música romântica comum (“Há um caminho da tua boca para a minha boca” e coisas assim). Disseram-me que Israel é uma espécie de Toni Carreira dos ciganos enquanto duas ou três ciganitas dançavam em cima de uma prancha de contraplacado deitada na erva. O cenário por trás dos artistas era composto por duas motoretas de carga enferrujadas e um balcão com lâmpadas pendendo de um fio. Era o que mais se parecia com um filme de Kusturica. Por volta da meia-noite, a lua cheia derramou sobre tudo uma luz bonita e quase amarela.

Quando o playback de Israel terminou, voltamos à rua dos ciganos. As janelas das casas estavam ocupadas por televisores, nos quais passavam filmes que mostravam os moradores. Os meus filhos estranharam que seja possível viver assim, entre paredes de madeira, telhados de chapa e chão de cimento. Eu perguntei-me, depois, se algum de nós, os que ali estávamos de visita, alguma vez abriria a porta de casa para que os ciganos por lá andassem a bisbilhotar à vontade.