(*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 20 de Abril de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)
Escutei Guillermo Martinez, o escritor argentino, referir-se ironicamente ao mais pequeno dos seus romances, Acerca de Roderer, como “um suplício breve”. Sendo um apreciador do humor, e sobretudo do humor negro, reparei que ele o disse durante o encontro Literatura em Viagem, que hoje(*) termina em Matosinhos, e num momento em que quase todas as deslocações internacionais se transformaram em suplícios longos e exasperantes por causa da nuvem produzida pelo vulcão de Eyjafjallajokull e do encerramento do espaço aéreo europeu. Imagino, por isso, o tunisino Hubert Haddad, retido em Frankfurt quando vinha a caminho de Matosinhos, não tendo mais nada para ler do que o pequeno romance de Martinez e desejando que esse “suplício breve” fosse um pouco mais longo, o suficiente, ao menos, para entreter as horas de reclusão.
Supondo que Haddad não foi capaz de encontrar alojamento alternativo em Frankfurt, vejo-o mergulhando, com milhares de outros passageiros, nessa espécie de paradoxo kafkiano que consiste em estar num aeroporto sem, na verdade, voar para lado nenhum e sem, por outro lado, poder abandonar a sala de espera por não ter para onde ir. Ao contrário dos companheiros de infortúnio, Haddad sentar-se-ia numa cadeira e leria Acerca de Roderer uma vez, depois outra, esforçando-se por permanecer tranquilo e alheio ao exaspero dos outros passageiros. Estaria tão imóvel como os milhares de viajantes parados nas filas para os balcões de informações, mas deslocado pela literatura para essa povoação de Puente Viejo onde Roderer e o narrador do romance disputam uma partida de xadrez.
Ao fim de algumas horas, Haddad – que não é já o escritor tunisino a caminho de Matosinhos, mas apenas um qualquer inventado viajante imóvel – acabaria por conhecer completamente Puente Viejo e o labiríntico raciocínio de Roderer e, por isso, levantar-se-ia para desentorpecer as pernas. Circularia um pouco e encontraria o estabelecimento que, em todos os aeroportos, se dedica à venda de livros. Entusiasmado com a possibilidade de aproveitar a interrupção da viagem a Matosinhos para se deslocar para outras paragens, Haddad entraria na livraria, a qual, com alguma sorte, não se teria especializado na chamada “literatura de aeroporto” e disponibilizaria alguns títulos que pudessem realmente proporcionar algum tipo de deslocação.
No decurso dos vários dias que passaria no aeroporto, Haddad percorreria a Patagónia de Chatwin, o Quénia de Karen Blixen, a Amazónia de Milton Hatoum, o Moçambique de Mia Couto, a Índia de Alberto Moravia, o Rio de Janeiro de Rubem Fonseca e a Paris de Julio Cortázar. Passaria pela Rússia e pela China, atravessaria o Norte da América e conheceria também a peculiar gente independente descrita pelo islandês Halldór Laxness – e aí estaria já quase no sopé do vulcão de onde escapa a nuvem de cinza que paralisa a Europa e as viagens. Retido em Frankfurt, mas viajando sem sair do sítio, Haddad estaria grato ao vulcão que o levou para tão longe.