(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 3 de Outubro de 2009. Hoje, como todas as terças-feiras, há mais)
Juro que tinha a intenção de dedicar esta crónica ao movimento do quadril de Beyoncé, a cantora, e ao modo como as capas dos jornais ficam um bocadinho mais primaveris sempre que Beyoncé ganha um prémio da MTV (fica prometido), mas sucede que morreu na semana passada, aos 71 anos, o velho Manel d’Novas. Para quem não saiba, Manel d’Novas é num dos mais notáveis escritores de mornas de Cabo Verde. Como o seu falecimento não suscitou quase atenção nenhuma nos media portugueses, fiquei um pouco indignado e triste com mais este exemplo do galopante triunfo de um certo cosmopolitismo parolo.
Fosse Manel d’Novas inglês, francês, cubano ou norte-americano e o acontecimento teria dado origem, pelo menos, a uma ou duas daquelas primeiras páginas estilosas, com uma fotografia a preto-e-branco a toda a altura da página e uma frase de efeito, compungida, rendendo homenagem à genial simplicidade do trovador da boina. Mas Manuel Jesus Lopes é apenas um escritor de canções num idioma exótico falado em bairros problemáticos de Lisboa. Porém, queiramos ou não, as mornas crioulas de Manel d’Novas são também um dos mais belos e doces produtos da cultura da língua portuguesa, assente no seu sedimento viajante.
A Manel d’Novas faltou aquilo de que beneficiou, por exemplo, o son cubano: um Ry Cooder e um Wim Wenders que acendessem os holofotes sobre a riquíssima tradição musical do século XX cabo-verdiano. A França conseguiu resgatar Cesária Évora e transformá-la numa estrela planetária, e inventou Mayra Andrade, mas faltou quem, suficientemente conhecido, fosse investigar a origem daquelas melodias tristes e belas e descobrir um fenómeno que não fica a dever nada ao que é retratado no filme Buena Vista Social Club. Agora talvez já seja tarde. Já morreu B. Leza, já morreu Ildo Lobo, já morreu Orlando Pantera e já morreu Manel d’Novas, a mão por trás de canções como Nôs Morna, Stranger ê ilusão, Lamento d’um emigrante, Cmé Catchorr ou Apocalipse, esta última celebrizada por Cesária Évora.
Já nem sequer é fácil encontrar, na cidade do Mindelo, quem mantenha viva a memória da música cabo-verdiana. Certa noite, assistindo a uma já rara serenata no Centro Cultural do Mindelo, oficiada por três velhos músicos, um actor brasileiro que estava na cidade há vários dias, e tinha dançado algumas dezenas de zouks, comentou comigo que não sabia como era bonita a música de Cabo Verde. Ainda não tinha podido escutá-la e podia perfeitamente ter ido embora ignorante se não se tivesse organizado aquela maravilha para assinalar o final de mais uma edição do festival de teatro Mindelact.
O caso, porém, talvez não justifique a indignação que senti. Bem vistas as coisas, Manel d’Novas foi a enterrar no Mindelo rodeado pelos seus amigos. Houve música e cantaram-se as mornas que ele escreveu, nas quais se encontra a melhor lição de todas (traduzo Apocalipse directamente do crioulo para que todos entendam): “Para quê tanta maldade neste mundo se nós só cá estamos um segundo?”. Nô perdê Manel d’Novas, mas a sua lição fica aí.