A propósito de mais esta entrada do impagável Diário de Bernfried Järvi, ocorre-me que vi, em tempos, uma mulher velha jogando cartas num desses grupos de reformados e ociosos que se juntam nos jardins da cidade. Se a memória não me trai (e trai-me cada vez mais e mais frequentemente), vi-a no jardim diante da Câmara de Matosinhos, em pleno exercício da batota, não sei se da lerpa ou da bisca lambida.
Pensei, então, que a presença da mulher num meio tão arreigadamente masculino e conservador como aquele devia revestir-se de uma importância sociológica não negligenciável. Aquela senhora jogando cartas havia de ser a consumação do longo e penoso processo de emancipação feminina. Mas tive, entretanto, mais em que ocupar o tempo.
Creio já ter deixado claro que o assunto me interessa sobremaneira (ainda que tenda naturalmente a valorizar outras modalidades de emancipação feminina), pelo que considero que a presença do elemento estranho no domínio másculo da bisca de jardim deve ser levada na devida conta e, eventualmente, estudada por quem de direito. Importa saber até que ponto, por exemplo, a invasão feminil implicou alterações na semântica das conversas entre os jogadores ou, ainda, se estes se privam de coçar as virilhas na presença do belo sexo; se arrotam e fazem batota para prejudicar a senhora; ou de que modo, enfim, são tratados os jogadores que aceitam formar pares com a mulher.
Há aqui, creio, todo um campo de investigação que deve ser explorado pelas ciências sociais e, para além disso, existe uma questão teológica que importará igualmente esclarecer: se é possível encontrar uma mulher a jogar cartas com os velhos do jardim, a possibilidade de lá estar também o diabo, aqui aventada por Järvi, não é completamente tola. Neste caso, talvez seja possível concluir, por simples dedução lógica, que o diabo efectivamente existe. E, existindo o diabo, é possível que exista também deus. E que joguem os dois às cartas.