terça-feira, 24 de novembro de 2009

Da guerra


© (Fazenda Tumba Grande, Angola)


O mais perto que estive da guerra foi numas férias de Verão – e fiquei a saber menos da guerra do que aquilo que aprendi lendo as reportagens do Pedro Rosa Mendes, do Adelino Gomes, da Alexandra Lucas Coelho e do Robert Fisk; ou o livro Território Comanche, do Arturo Pérez-Reverte.

Tudo o que sei da guerra devo-o, portanto, àqueles que estiveram perto das explosões, que viram os mortos retorcidos como bonecos de trapos na berma das estradas e que seguiram adiante para contar como é. Ou por ter visto demasiado cinema: “I love the smell of napalm in the morning”...

Não sei também ao que cheira a guerra, ou se todas as guerras têm o mesmo cheiro; se o napalm e a pólvora se sobrepõem ao cheiro dos corpos em decomposição, ao do sangue, ao da terra revolvida pelas explosões. A minha guerra é um álbum de fotografias e preto-e-branco no fundo da porta do meio de um guarda-vestidos antigo, a paisagem do Bengo, no Norte de Angola, na qual se adivinha o calor dos meses e a imagem do meu pai ainda novo e quase nunca parecendo preocupado com a guerra ou com o que fosse que houvesse em volta. Já o alferes Altino, que estava com o meu pai no campo aéreo que protegia a Fazenda Santa Eulália, parece-me uma pessoa assombrada pelos fantasmas dessa guerra. Conversámos uma vez sobre Nambuangongo e os seus olhos puseram-se sombrios como um dia de cacimbo. Devia ser aquilo, a guerra: uma nuvem espessa nos olhos dos homens.

Apesar do alferes Altino e de tudo o que tentei saber, não sei quase nada da guerra excepto aquilo que vi na Quibala, quatrocentos quilómetros a sudeste de Luanda, nos últimos dias de umas férias de Verão: na avenida grande, ao lado das palmeiras altas e do busto de Agostinho Neto, os prédios continuavam mordidos pelas bombas, derrocados, ameaçando tombar, exactamente como imaginei enquanto lia essa loucura demasiado lúcida que é Baía dos Tigres, do Pedro Rosa Mendes. Numa esquina mais abaixo, à saída para o Catofe, estavam dois tanques desconjuntados e insolitamente verdes: pareciam esperar um sinal para avançar no cruzamento e abandonar, enfim, o campo de batalha e deixar a cidade entregue à trégua.

Só depois, porém, senti o medo – ou uma espécie de medo. Se é verdade que as operações de desminagem não confirmaram as previsões mais negras sobre a existência de milhões de engenhos por deflagrar enterrados no chão angolano, os mutilados cruzam-se connosco nas ruas indiferentes aos grandes números e à estatística. Na hora de pôr o pé fora das estradas e dos caminhos das picadas impõe-se, por isso, alguma cautela. Certa manhã, na fazenda da Tumba Grande, a três horas de Luanda, preparava-me para atravessar um terreno recém-arado com a mesma despreocupação com que, na Europa, passearia por um prado verde; quando, porém, o fazendeiro português comentou, com certa displicência, que era ainda preciso ter cuidado com as minas, eu estaquei onde estava - e voltei para junto da pick-up, tentando pisar metodicamente as minhas próprias pegadas.

Crónica publicada no P2 do Público, no dia 1 de Setembro de 2009. Hoje, como todas as terças-feiras, há mais