segunda-feira, 18 de maio de 2009

Apaneleirar-se

Quando recebeu um inquieto telefonema de Javier Marías, preocupado com o tom confessional e doméstico de duas crónicas recentes, o escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte reconheceu que Marías tinha razões para estar preocupado. “Vou tentar estar mais atento, estou a apaneleirar-me”, respondeu (gargalhando, parece).

A história vem contada num número recente do El País Semanal, narrada pelo também escritor espanhol Javier Marías, e li-a instantes depois de ter passado os olhos pelas primeiras linhas de um artigo da revista Pública dedicado ao atroz sofrimento que, pelos vistos, acomete polvos, lulas e crustáceos antes de nos aterrarem no prato. Se tal descoberta científica vier a ser confirmada, avisa a minha colega Clara Barata, a nossa ementa poderá sofrer alterações.

Cercado pelos diversos confortos e mimos da tecnologia, posso, é verdade, estar a apaneleirar-me um pouco em algumas coisas, mas não vejo, ainda assim, como pode a minha ementa mudar só porque passei a acumular a informação segundo a qual o meu polvo de escabeche teve um sobressalto doloroso antes de ser morto e congelado dentro de uma embalagem colorida. Suponho que isto faça de mim um ser miserável, bruto e insensível, mas já ouvi os lancinantes guinchos de um porco na matança e nem por isso me tenho abstido de apreciar bestialmente as mais diversas (e impuras) partes do animal – porque gosto e porque temo que, um dia destes, os cientistas descubram também que os vegetais em geral e o tofu em particular sofrem tremendamente enquanto são arrancados, lavados e cozinhados (e prefiro não ficar, nessa altura, confrontado com a inevitabilidade de ter que comer esterco, pelo menos enquanto alguém não se lembrar de demonstrar cientificamente que os quadrilhões de bactérias que há no excremento sofrem também atrozmente enquanto são deglutidos pelos humanos, esses predadores insaciáveis).

Preferia de bom grado não fazer aqui o papel do sujeito que abana a cabeça e sentencia que “o mundo está perdido”, mas a verdade é que, às vezes, parece mesmo que as coisas ameaçam escapar ao entendimento comum de um animal que sobreviveu e se fez dominante pela sua espantosa capacidade para se adaptar a condições extremas e comer aquilo que fosse preciso para obter uma quantidade razoável de proteínas.

Felizmente, basta uma descida regular ao mundo real para que fique claro que há sempre quem mantenha aceso o orgulhoso facho da espécie, mesmo em condições particularmente penosas. Lembro-me agora, assim de repente, de um cidadão de Miragaia que, há dias, recebendo em sua casa um político da oposição, mostrou, como de costume, as paredes enegrecidas pela humidade, os móveis desconjuntados e o soalho em mau estado. Quando o vereador se despedia e abandonava o tugúrio, o homem bateu-lhe nas costas e ilustrou de viva voz a pulsão que tem assegurado, desde o mais profundo negrume dos tempos, a preservação da espécie: “Se eu tivesse o seu lombo, engenheiro, ainda fazia um par de gémeos à minha mulher”. Haja esperança, portanto.