(texto que li hoje na cerimónia de abertura das V Semana da Leitura das Bibliotecas de Famalicão, que tive a honra de "apadrinhar")
O
dia e a noite são uma coisa só, como duas metades distintas de uma unidade de
tempo que dura 24 horas e a que habitualmente chamamos apenas “dia”. Assim, e
do mesmo modo que um dia é composto pelo dia propriamente dito e pelo seu
reverso, que é a noite, também a escrita é uma actividade que, ao menos para
mim, só faz sentido quando composta por duas partes mais ou menos iguais:
aquela em que escrevo e aquela em que leio para, entre outras coisas, procurar
aprender alguma coisa com quem escreve melhor do que eu.
Foi assim desde o começo e, se penso nisso, logo concluo
que a leitura precedeu mesmo a escrita. No meu caso, aliás, a escrituração
precedeu tudo.
Explico:
eu tinha quinze anos e, para ter algum dinheiro no bolso, fui trabalhar nas
férias de Verão para um gabinete de contabilidade. De manhã à noite, o meu
labor consistia em preencher as linhas dos antigos livros de Razão com a melhor
letra que era capaz de desenhar. Escrevia, por exemplo, a palavra “caixa”, à
qual acrescentava, na coluna respectiva, um valor monetário que ainda se
contabilizava em centenas ou milhares de escudos. Depois escrevia a expressão
“despesas com o pessoal” e inscrevia um novo valor. E assim sucessivamente,
como um copista paciente. Também, às vezes, tinha de preencher os livros de
actas das empresas cujos livros estavam à nossa guarda: aos tantos dias do mês
tal, reuniram-se na sede da empresa os sócios-gerentes — e blá, blá, blá, blá,
blá, tudo sempre igual e aborrecidamente regular.
A
tudo isto se chamava escriturar e só muito mais tarde percebi que o meu
trabalho talvez se assemelhasse bastante àquele que fazia o Fernando Pessoa
diurno enquanto se dedicava à tradução de correspondência comercial. Ou que, no
fundo, tinha estado a copiar involuntariamente o que fazia o heterónimo
Bernardo Soares, que era guarda-livros numa empresa da Baixa de Lisboa.
Fosse
como fosse, o Verão em que comecei a trabalhar terminou e no final de Setembro
regressei às aulas sem pensar mais em escriturações. Os meus patrões, porém,
logo sentiram a falta que eu fazia à actualização dos livros de Razão, pelo que
me propuseram que passasse a escriturar em part-time, nas horas que a escola
deixava livres. Aceitei. E creio que foi nessa altura que a escrita e a
literatura me colonizaram definitivamente.
Escrita
e escrituração confundiram-se provavelmente quando um dos meus colegas desse
trabalho regular e chato me emprestou um livro. Chamava-se “Cem anos de
solidão” e tinha sido escrito por um colombiano que então estava na moda,
chamado Gabriel García Márquez. Li-o e foi como se me tivesse sido revelada a
magia inteira, um mundo novo e maravilhoso do qual passei a querer fazer parte.
Macondo, a cidade imaginária desse romance, não era só um sítio de papel e
letras: era um sonho concreto em que se podia entrar e ver, acompanhando as
quimeras insensatas dos Buendía, a magia extravagante do cigano Melquíades, a
mortal beleza de Remédios e, enfim, a vida épica e desconcertante de todos os
outros personagens, os quais, de algum modo, foram para mim o princípio de toda
a literatura.
Só
muito mais tarde, porém, me achei capaz de ser escritor. Antes disso
emprestaram-me ainda “A Jangada de Pedra” do José Samarago e comecei eu a
descobrir os meus próprios livros, caçando-os pacientemente nas barraquinhas da
Feira do Livro do Porto, que naquela altura se montavam à sombra das grandes
árvores da Rotunda da Boavista. Li muito, li quase tudo o que encontrei nos
dois anos que se seguiram, aprendendo aquilo de que fui capaz e, se calhar,
preparando-me sem o saber para conseguir ser jornalista profissional com a
idade de 18 anos.
Ler
e escrever tornaram-se, deste modo, as duas faces distintas mas complementares
da vida que eu tinha. Lendo aprendi não só a escrever, mas também coisas
incríveis e inesquecíveis como aquilo de o paraíso ser, para Jorge Luís Borges,
uma espécie de biblioteca — uma biblioteca talvez como esta, com as suas
infinitas histórias murmurando do alto das estantes, e os casos ocorridos e
inventados desde o início dos tempos e talvez para sempre sendo contados com o
silêncio e o vagar das páginas por abrir.
Depois,
vários anós após o dia em que a escrituração da contabilidade me abriu as
portas da literatura, escrevi e publiquei um livro e tornei-me escritor de
verdade. Tal como antes, ler, ler muito, continuou a ser parte do acto de
escrever. Mas descobri também que os livros que eu escrevia só ganhavam o seu
sentido todo depois que alguém os lia e completava, acrescentando-os de uma
infinita variedade de leituras possíveis.
Cada
livro que escrevo, percebi, é único e, ao mesmo tempo, múltiplo. Cada livro que
escrevo é um livro diferente nas mãos de cada um dos diferentes leitores que
encontra, um pouco como se aquilo que eu escrevo se multiplicasse
indefinidamente e passasse a ser muito maior do que eu, infinitamente maior do
que eu sou capaz de fazer.
É
isto para mim, hoje, a literatura. Aqui, nesta biblioteca, cada livro pode ser
mil livros, ou dez mil. Todos juntos, depois de lidos, são um pedaço desse céu
de histórias e de sonhos a que Borges chamava paraíso. Os que eu escrevi também
aqui estão. E às vezes penso que isso é um pouco como estar no céu.