segunda-feira, 10 de março de 2014

Escriturar, ler e escrever


(texto que li hoje na cerimónia de abertura das V Semana da Leitura das Bibliotecas de Famalicão, que tive a honra de "apadrinhar")

O dia e a noite são uma coisa só, como duas metades distintas de uma unidade de tempo que dura 24 horas e a que habitualmente chamamos apenas “dia”. Assim, e do mesmo modo que um dia é composto pelo dia propriamente dito e pelo seu reverso, que é a noite, também a escrita é uma actividade que, ao menos para mim, só faz sentido quando composta por duas partes mais ou menos iguais: aquela em que escrevo e aquela em que leio para, entre outras coisas, procurar aprender alguma coisa com quem escreve melhor do que eu.

Foi assim desde o começo e, se penso nisso, logo concluo que a leitura precedeu mesmo a escrita. No meu caso, aliás, a escrituração precedeu tudo.

Explico: eu tinha quinze anos e, para ter algum dinheiro no bolso, fui trabalhar nas férias de Verão para um gabinete de contabilidade. De manhã à noite, o meu labor consistia em preencher as linhas dos antigos livros de Razão com a melhor letra que era capaz de desenhar. Escrevia, por exemplo, a palavra “caixa”, à qual acrescentava, na coluna respectiva, um valor monetário que ainda se contabilizava em centenas ou milhares de escudos. Depois escrevia a expressão “despesas com o pessoal” e inscrevia um novo valor. E assim sucessivamente, como um copista paciente. Também, às vezes, tinha de preencher os livros de actas das empresas cujos livros estavam à nossa guarda: aos tantos dias do mês tal, reuniram-se na sede da empresa os sócios-gerentes — e blá, blá, blá, blá, blá, tudo sempre igual e aborrecidamente regular.

A tudo isto se chamava escriturar e só muito mais tarde percebi que o meu trabalho talvez se assemelhasse bastante àquele que fazia o Fernando Pessoa diurno enquanto se dedicava à tradução de correspondência comercial. Ou que, no fundo, tinha estado a copiar involuntariamente o que fazia o heterónimo Bernardo Soares, que era guarda-livros numa empresa da Baixa de Lisboa.

Fosse como fosse, o Verão em que comecei a trabalhar terminou e no final de Setembro regressei às aulas sem pensar mais em escriturações. Os meus patrões, porém, logo sentiram a falta que eu fazia à actualização dos livros de Razão, pelo que me propuseram que passasse a escriturar em part-time, nas horas que a escola deixava livres. Aceitei. E creio que foi nessa altura que a escrita e a literatura me colonizaram definitivamente.

Escrita e escrituração confundiram-se provavelmente quando um dos meus colegas desse trabalho regular e chato me emprestou um livro. Chamava-se “Cem anos de solidão” e tinha sido escrito por um colombiano que então estava na moda, chamado Gabriel García Márquez. Li-o e foi como se me tivesse sido revelada a magia inteira, um mundo novo e maravilhoso do qual passei a querer fazer parte. Macondo, a cidade imaginária desse romance, não era só um sítio de papel e letras: era um sonho concreto em que se podia entrar e ver, acompanhando as quimeras insensatas dos Buendía, a magia extravagante do cigano Melquíades, a mortal beleza de Remédios e, enfim, a vida épica e desconcertante de todos os outros personagens, os quais, de algum modo, foram para mim o princípio de toda a literatura.

Só muito mais tarde, porém, me achei capaz de ser escritor. Antes disso emprestaram-me ainda “A Jangada de Pedra” do José Samarago e comecei eu a descobrir os meus próprios livros, caçando-os pacientemente nas barraquinhas da Feira do Livro do Porto, que naquela altura se montavam à sombra das grandes árvores da Rotunda da Boavista. Li muito, li quase tudo o que encontrei nos dois anos que se seguiram, aprendendo aquilo de que fui capaz e, se calhar, preparando-me sem o saber para conseguir ser jornalista profissional com a idade de 18 anos.

Ler e escrever tornaram-se, deste modo, as duas faces distintas mas complementares da vida que eu tinha. Lendo aprendi não só a escrever, mas também coisas incríveis e inesquecíveis como aquilo de o paraíso ser, para Jorge Luís Borges, uma espécie de biblioteca — uma biblioteca talvez como esta, com as suas infinitas histórias murmurando do alto das estantes, e os casos ocorridos e inventados desde o início dos tempos e talvez para sempre sendo contados com o silêncio e o vagar das páginas por abrir.

Depois, vários anós após o dia em que a escrituração da contabilidade me abriu as portas da literatura, escrevi e publiquei um livro e tornei-me escritor de verdade. Tal como antes, ler, ler muito, continuou a ser parte do acto de escrever. Mas descobri também que os livros que eu escrevia só ganhavam o seu sentido todo depois que alguém os lia e completava, acrescentando-os de uma infinita variedade de leituras possíveis.

Cada livro que escrevo, percebi, é único e, ao mesmo tempo, múltiplo. Cada livro que escrevo é um livro diferente nas mãos de cada um dos diferentes leitores que encontra, um pouco como se aquilo que eu escrevo se multiplicasse indefinidamente e passasse a ser muito maior do que eu, infinitamente maior do que eu sou capaz de fazer.

É isto para mim, hoje, a literatura. Aqui, nesta biblioteca, cada livro pode ser mil livros, ou dez mil. Todos juntos, depois de lidos, são um pedaço desse céu de histórias e de sonhos a que Borges chamava paraíso. Os que eu escrevi também aqui estão. E às vezes penso que isso é um pouco como estar no céu.