domingo, 29 de abril de 2012

Derradeira poesia

Texto da coluna Piolho dos Livros da revista 2 do Público, publicada no dia 22 de Abril



Sonhei, uma noite destas, que viajava num avião muito decrépito e desconjuntado, pilotado por um freak norte-americano que fumava charros e conversava com os passageiros enquanto evitava colisões com gestos displicentes (voávamos muito baixinho). A dado passo, o avião entrou numa grande nave que era uma espécie de museu da aeronáutica, com cujas relíquias só não esbarrávamos porque o americano conseguia sempre manobrar para evitar o desastre no último momento. Saímos lá de dentro estilhaçando uma grande janela e, então, despertei.

Ao acordar lembrei-me de uma história que me contou, há mais de dez anos, o Ivo Machado, um poeta que é controlador aéreo, ou vice-versa. O Ivo escreve versos desenhando letras miudinhas, belíssimas, em cadernos de capa dura, e lê os poemas que escreve numa voz grave e forte, como de oráculo – a mesma voz que acompanhou as últimas horas de um aviador em rota de colisão com o fim.

O episódio tem quase trinta anos e duas personagens: o Ivo Machado, então a trabalhar no centro de controlo aéreo da ilha de Santa Maria, nos Açores, e um velho piloto a bordo de um pequeno avião estafado que tinha sido comprado para ser usado como pulverizador nas plantações da Califórnia. No trajecto entre os Açores e o continente americano, os ventos fortes do Atlântico Norte obrigaram o aviador a andar aos ziguezagues e, por isso, as reservas de combustível do avião foram chegando ao fim. Quando percebeu que não conseguiria já atingir nenhum ponto em terra firme, o homem solitário aos comandos da aeronave contactou o controlo e ficou a conversar com o Ivo, pondo-o a par dos factos: era provável que morresse dali a pouco.

Diligente, o Ivo fez o que profissionalmente lhe competia. Recolheu dados, fez cálculos, deu instruções. Quando, porém, se tornou evidente que as leis da física e da aeronáutica nada podiam valer ao viajante, ocorreu-lhe preencher o denso silêncio que há sobre o mar recitando poesia. Traduziu todos os poemas que sabia de cor e, depois, lembrou-se de que tinha no cacifo um livro de Walt Whitman que alguém tinha abandonado no café do aeroporto: Leaves of Grass. Imagino-o com uma clareza enorme: o avião perdendo altitude, aproximando-se mais e mais do cume prateado das ondas, e a voz do Ivo recitando, talvez, aquele verso que diz “To fly in the clouds and winds with me, and play with the measureless light”, e o aviador cerrando os olhos e sentindo ao seu redor a desmedida luz da madrugada.
Na manhã seguinte, o Ivo soube que, a partir do ar, as autoridades canadianas tinham localizado o avião, o qual tinha, afinal, amarado perfeitamente. Respirou de alívio. Disseram-lhe, mais tarde, que um painel do cockpit se tinha soltado com o impacte no mar, caindo sobre o piloto e matando-o. Como sucede com todas as pessoas que já ouviram esta história, tenho a certeza de que o aviador morreu em paz, embalado pela poesia.