segunda-feira, 14 de março de 2011

Como vem nos livros*


Visto existirem, como escreveu Shakespeare, mais coisas entre o céu e a terra do que as sonhadas pela vã filosofia de Horácio, a realidade urde, às vezes, situações em que quase não se acredita – como aquela que juntou, na semana passada, o espanhol Alberto Torres Blandina e o cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa num autocarro que circulava pelas ruas da Póvoa de Varzim.

Como no comboio descendente de Fernando Pessoa, havia, neste autocarro cheio de escritores, quem gargalhasse, quem fosse dormindo, quem fosse com sono e outros que “nem sim nem não”. Blandina, escritor convidado para participar no encontro literário Correntes d’Escritas, devia ir, como no poema, calado para os outros, mas atento ao que se dizia, pois percebeu que Mário Lúcio é de Cabo Verde e aproveitou para meter conversa, comentando que uma das suas músicas favoritas é daquele país e se chama Dor di amor. Isto, porém, era coisa pouca, pois logo o escritor crioulo pôs o outro a par de tudo: “Fui eu que compus essa canção”, disse.

Talvez por não ser um crente do poder desconcertante das coincidências, Blandina deu seguimento à conversa dizendo que a sua versão preferida de Dor di amor é a do grupo Simentera. “Mas fui eu que fundei o Simentera”, contrapôs o atónito Mário Lúcio.

Não assisti à conversa, mas ouvi quando Mário Lúcio a contou à cubana Karla Suarez e ao espanhol José Manuel Fajardo, os quais também coincidiram nas Correntes d’Escritas há alguns anos e, depois, perceberam que iam ser a música favorita um do outro. Estávamos à espera do elevador e o Mário Lúcio ficou de costas para as pessoas que iam chegando. Não viu, por isso, quando Alberto Torres Blandina se aproximou, encostando-se discretamente à parede e ficando a ouvir a narração da sua própria história. Mas, nesse instante, ante o espanto de quem ouvia o caso, Mário Lúcio voltou-se e viu Blandina ali mesmo, sorrindo e confirmando tudo. “Contei-o no Facebook e ninguém acredita”, acrescentou o espanhol.

Visto que os escritores, segundo parece, têm o estranho poder de convocar o acaso, subi ao quarto para largar o casaco e desci logo depois. Na viagem descendente entre o nono andar e o rés-do-chão, o elevador parou, a porta abriu-se e Alberto Torres Blandina, o próprio, ficou diante de mim e entrou na cabina, o que me pareceu bestialmente conveniente e também, a seu modo, muitíssimo literário, na medida em que estas coisas só costumam acontecer nos livros. Comentei que a história do encontro dele com o Mário Lúcio me parecia incrível e quis saber como raio tinha um espanhol, entre as suas canções favoritas, o original de uma modinha cabo-verdiana à qual, depois, Cesária Évora deu alguma notoriedade. A explicação é simples: Blandina é músico além de ser escritor e, por isso, toca numa banda de world music.

Faz sentido. Mas não deixa de ser extraordinário que, de entre todas as musics que existem no world, Blandina tivesse escolhido precisamente aquela que Mário Lúcio compôs. E que, sendo o mundo tão vasto, tivessem vindo encontrar-se na Póvoa de Varzim.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 1 de Março de 2011