sexta-feira, 20 de março de 2020

Vinagre

Os elevadores do meu prédio cheiram agora a vinagre. Ao contrário do que é costume, desta vez estou a par dos motivos desta ocorrência peculiar: haviam-me contado na semana passada que circula no lodaçal das redes sociais um desses artefactos digitais virais com milhões de visualizações e partilhas, no qual um suposto especialista desacredita os produtos à base de álcool e garante que o vírus pandémico da moda pode ser mais eficazmente combatido com o uso de vinagre.

Não conheço pormenores, uma vez que mantenho um rigoroso afastamento higiénico relativamente às chamadas redes sociais. Seja como for, não me lembro de ter visto em lado nenhum instruções das autoridades de saúde, a DGS, a OMS, a EMA, o Infarmed ou a FDA, aconselhando este procedimento profilático. Suponho, todavia, que ao género de pessoa capaz de votar no Ventura, no Trump, no Bolsonaro ou no Johnsson lhe sejam relativamente indiferentes a credibilidade das fontes, os critérios de verdade e o rigor científico. Os elevadores do meu prédio passaram a cheirar a vinagre e, de acordo com as mulheres-a-dias que ainda frequentam os desertos autocarros da cidade, o milagroso líquido já esgotou nas prateleiras de alguns supermercados, sendo agora um produto tão disputado como as máscaras cirúrgicas, as luvas de látex, o papel higiénico, o atum de conserva, os ovos e o gel de álcool.

Pelas mesmas utentes do autocarro em que ontem temerariamente embarquei soube também do episódio do marido de não sei quem, que cometeu a imprudência de sair do supermercado com apenas um maço de papel higiénico, alegando que não tinha necessidade de trazer mais. A esposa, evidentemente, ralhou-lhe à frente de quem estava: "Se os outros trazem papel higiénico aos montes, nós também podemos". Ao ouvir contar a história, pareceu-me que estava também a escutar a lenga-lenga do professor Marcelo sobre os quase novecentos anos de história de um país indómito, que resistiu a muitas adversidades e que ainda há-de cá estar quando os outros desaparecerem.

Demonstrando, aliás, que não há corona capaz de ameaçar um povo disposto a lutar com denodo por um rolo de papel higiénico, num dos telejornais da noite vi um idoso quase alheio à doença do medo, acamaradando num banco de jardim e garantindo que não teme o vírus por um motivo absolutamente cristalino: ele, que ainda ali está vivo e inteiro, sobreviveu à guerra do ultramar. Já não seria pouco.  Vendo, porém, o que dizia, ocorreu-me que o homenzinho também cometeu a façanha de perdurar a si mesmo, a este país e à pandemia da estupidez que há tantos anos avança por aí sem que ninguém mova um músculo.