A apropriação da terra e daquilo que nela existia –
incluindo, durante muito tempo, os seres humanos que tinham o azar de lá estar
–, e a cadeia de valor acrescentado que a propriedade gerou, constituíram,
assim, uma espécie de génesis da civilização ocidental e do capitalismo. Não
foi o melhor dos começos: filósofos como Santo Ambrósio, São Basílio Magno ou
Pierre-Joseph Proudhon consideraram mesmo que a propriedade constitui um roubo,
igualmente praticado por monarcas selvagens e pelo clero, que nem sequer se
coibiu de lucrar alarvemente, e durante vários séculos, com a escravatura.
Os autores do assalto não se limitaram, todavia, a prosperar
com ele. Criaram também mecanismos legais e éticos capazes de impedir que
outros fizessem o mesmo. O Marquês de Sade explica-o de modo cristalino: «O
roubo só é punido porque viola o direito de propriedade, ainda que este direito
tenha na sua origem nada mais do que o próprio roubo».
Quase ninguém se atreve, pois, a lesar um grande
proprietário, nem sequer ao abrigo do adágio segundo o qual «ladrão que rouba
ladrão tem cem anos de perdão». Não faltam, todavia, exemplos de empresas e
pessoas que continuam a apropriar-se de bens, recursos e propriedades que,
sendo do Estado, deviam pertencer a todos os cidadãos. Beneficiam os
usurpadores, para isso, da corrupção e/ou conivência de políticos e
funcionários, e de figuras jurídicas tão burlescas como a usucapião, que parece
uma cínica homenagem do legislador aos primeiros selvagens que se tornaram
proprietários.
Embora a desigual distribuição da riqueza gerada ab initio pelo roubo da terra nunca
tenha penalizado tantos indivíduos como hoje, o assunto quase não se discute.
Entretemo-nos, em vez disso, com as férias dos famosos, os seus romances
tumultuosos, as respetivas dietas, a substância dos abraços ou o último rebento
da monarquia inglesa – apenas o mais recente de uma longa linhagem de larápios.
*Última Crónica Ilustrada que escrevi para a Notícias Magazine, publicada em Maio último