quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Matinal

De manhã cedo, pouco depois que o dia nasce, há uma animação febril diante das portas dos restaurantes e das confeitarias. Do bojo dos camiões saem grandes sacas de batatas e de cenouras, caixas de legumes frescos. De outro veículo, estacionado ao lado, dois homens acartam enormes embalagens de papel cheias de pedaços do carvão que, daí a pouco, há-de estar em brasa na grande labareda da churrascaria. Um outro camião detém-se mais adiante e as lonas abertas revelam sacos enormes de farinha de trigo. Cheira a terra, a húmus, a coisas essenciais e concretas, mas o trânsito passa e segue indiferente ao labor dos homens que carregam e descarregam o que havemos de comer - um pouco como se fossem seres invisíveis ou inexistentes e todas as coisas nascessem já prontas a consumir nos sítios onde as compramos. E, todavia, adquiro uma estranha consciência do mundo no momento em que vejo descarregar mais uma saca de carvão. O carregador, percebo, é uma máquina eficiente e discreta, tanto mais eficaz quanto mais invisível for, o que parece encerrar uma lição qualquer sobre a vida. Parece-me, enfim, que ver o carvão sendo descarregado me transforma num indivíduo mais sábio, embora não haja neste conhecimento senão força, suor e banalidade; nem haja naquilo que penso, observo e sinto mais do que banalidade, preguiça e sinais de um trágico sedentarismo burguês.