sábado, 4 de janeiro de 2014

Teatro vazio


Num teatro anatómico de verdade, suponho, há-de também chegar o momento em que as bancadas se esvaziam dos praticantes de Medicina que ali vão para bisbilhotar as entranhas alheias. Instalar-se-á no anfiteatro um silêncio profundo e denso (semelhante apenas àquele que existe nos lugares habitados pelos mortos e pelas memórias deles), e a mesa de dissecação, limpa dos cadáveres e das suas vísceras, parecerá apenas uma mesa comum, uma simples peça de mobiliário. Os corpos retalhados estarão recolhidos algures, num sítio frio como o Inverno, corrompendo-se muito devagar mas sem remédio, simplesmente a salvo da exposição desnecessária. Não se escutará alma viva nem morta, apenas o eventual zumbido dos motores da refrigeração, o ocasional barulho produzido por uma lâmpada defeituosa que alguém esqueceu acesa. Haverá, em todo o caso, uma espécie de silêncio — uma espécie de paz possível — flutuando no ar do teatro vazio.