sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Deviam ser extraterrestres

Outros indivíduos haverá capazes de garantir que isto é tudo muito comum e sem nada de especial, mas eu, que sou simples, sobressaltei-me um bocado quando, de repente, o computador começou a escrever coisas de moto próprio: frases inteira numa língua que não identifiquei imediatamente, mas que agora estou convencido  de que estavam redigidas num sânscrito muito escorreito e limpo, como se fosse um deus antigo e misterioso a manobrar os interstícios do laptop. Não consegui, bem entendido, decorar nenhuma das orações que foram aparecendo no monitor e que, depois, desapareceram sem motivo aparente, tão incompreensivelmente como antes se haviam formado. Podia, claro, tratar-se de outro idioma qualquer, ou da mera acumulação de caracteres ditada por um vírus informático muitíssimo estúpido, mas, ainda assim, convenci-me de que, se o computador tinha crashado, não se tratava de um acaso. Alguém (alguma coisa) estava a tentar comunicar comigo e, para o efeito, recorria a uma linguagem superior que, admito, talvez fosse o esperanto ou o islandês. Pareceu-me bastante apropriado, aliás, que a revelação se tivesse feito anunciar bloqueando-me o teclado e impedindo-me de reagir. Não consegui desligar o aparelho, nem reiniciá-lo, tendo-me limitado a assistir, impotente, ao momento em que o processador de texto entrou em funcionamento e as letras começaram a aparecer no monitor de forma regular e ordenada. E que belas frases foram escritas! Está certo que não percebi patavina, mas, ao fim de uma certa idade, somos capazes de pressentir a beleza intrínseca das coisas mesmo quando não as entendemos perfeitamente. Sei muito bem do que estou a falar. Já vivi muitos anos e vi coisas inexplicáveis que eu sei lá, mas nem por isso dei por mal empregue o tempo. Aprende-se sempre alguma coisa com aquilo que está para além do nosso entendimento, nem que seja a impressão de que há alguma coisa que nos escapa. Foi também, de resto, o que aconteceu com a mensagem que apareceu no monitor do computador, a qual, tenho a certeza, era tão vasta e profunda que não seria capaz de lhe aceder nem que vivesse três mil anos. Retive, ainda assim, a transcendência de tudo aquilo — o espírito do momento, digamos assim para lhe chamar alguma coisa. A patroa, claro, diz que o inventei de uma ponta à outra, mas ela, já se sabe, é bruta como uma porta. Não possui a sensibilidade necessária para percepcionar a epifania e até suponho que nem sequer saiba o que é uma epifania. Bruta como uma porta, é o que eu sempre lhe digo. Não lhe fazia mal nenhum ler um livro ou outro, consultar os jornais online ou fazer amigos no Facebook, mas desdenha de tudo o que não seja cozinhar, lavar, passar e cerzir coturnos. Nem sei muito bem porque me dei ao incómodo de lhe contar o sucedido, mas ela encontrou-me branco como a cal e julgou que tinha tido um ataque ou que o diabo passara por ali. Qual diabo qual quê?, argumentei. Foi uma epifania. Mas ela insistiu com a história do diabo e ficou a marrar naquilo, sobretudo depois que lhe falei nas frases escritas numa língua incompreensível e que se redigiam espontaneamente, embora de uma forma muito clara e luminosa.  Para a minha patroa, porém, todos os mistérios têm invariavelmente duas explicações: ou é coisa do diabo ou são modernices da internet. E não adiantou de nada explicar-lhe que não podia ser, que não é possível que o computador escreva sozinho e que o diabo não seria capaz de coisa assim bonita que eu sei lá. Falei-lhe também da beleza intrínseca, mas ela encolheu os ombros (como se a beleza intrínseca fosse uma caspa branca igual à dos anúncios do Cristiano Ronaldo e pudesse apagar-se assim sem mais nem porquê). Considerou que, se calhar, devem ter sido extraterrestres. Também encolhi os ombros, mas fiquei a matutar no assunto. Na eventualidade de ter-se tratado de uma tentativa de contacto de terceiro grau efectuada por criaturas do outro mundo, quero dizer. Tenho as minhas dúvidas, porém. Nada me garante que extraterrestres saibam sânscrito ou esperanto. Ou islandês, vá lá. Sendo um sujeito precavido, analisei, em todo o caso, outras possibilidades, mas nenhuma me satisfez. A patroa continuava a dar-lhe com o diabo e com os extraterrestres, resmungando a partir da cadeira que costuma arrastar para junto da janela para conseguir ver o que está a fazer aos coturnos. Pendura os óculos na ponta do nariz e encarniça-se sobre o ovo de cerzir, costurando pespontos rápidos e inúteis. O serviço nunca fica em condições e trago sempre as meias rotas, o que há-de ser uma vergonha se, um dia, calha de os extraterrestres virem aí bater à porta, ou se eu tiver mesmo um ataque e tiver de ir para o hospital à pressa. Com a idade que tenho é melhor estar prevenido para as piores eventualidades. Para as melhores também, bem entendido. É por isso que passo o dia diante do computador velho que o nosso neto do meio me deu: ninguém me tira da cabeça que, se deus vier outra vez ao mundo ou se os extraterrestres quiserem entrar em contacto connosco, há-de acontecer tudo na internet, que é onde agora está toda a gente. Farto-me de tentar explicá-lo à patroa, mas ela encolhe os ombros e faz cara de contrariada. Diz que sabe muito bem que o computador só serve para indecências, para ver galdérias nuas e filmes de poucas-vergonhas, e acusa-me de ter inventado esta história da epifania só para despistar. Mas ela sabe muito bem que tipo de epifanias eu vejo na internet. Faz de conta, finge que não liga, mas bem vê. A ela ninguém lhe come as papas na cabeça, ameaça — e dobra as peúgas que acabou de cerzir.