segunda-feira, 27 de maio de 2013

Abarcar o mundo com as pernas

Assisti ontem, no âmbito do LeV, em Matosinhos, a mais um debate no qual se discutiu o famigerado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Sendo alguém que nunca precisou de acordo para entender o português do Brasil ou o português do Mia Couto (que justamente acaba de vencer o Prémio Camões — parabéns!), para citar apenas dois exemplos deliciosos de variantes da língua em que comunicamos, também tenho uma posição difícil de sustentar nesta matéria: não tenho nada contra um acordo abstracto, mas chocam-me inúmeros exemplos concretos do acordês. Tenho optado, por isso, por escrever na língua que aprendi e que me parece razoável, muito melhor, em todo o caso, do que o idioma dos espetadores, da receção e quejandos (vocábulos que o meu computador, aliás, nem sequer reconhece como palavras).

Mais do que valorizar aquilo que separa os falantes do português (matraquilho ou pimbolim, gabarito de prova ou enunciado de exame, comboio ou trem, autocarro ou ônibus), sempre me encantaram sobretudo as belas coincidência e encontros que a nossa língua proporciona. Já contei, em tempos, a emoção que senti quando, no Brasil, conversei em português com um indígena com o rosto coberto por pinturas de guerra, ou como a recordação do falar da minha bisavó materna foi um auxílio fundamental para poder ler o Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa. Há dias ganhei mais um exemplo para a colecção de coisas belas da minha língua: lendo o S. Bernardo do brasileiro Graciliano Ramos, encontrei na narração de Paulo Honório a expressão "abarcar o mundo com as pernas", sinónimo de grande ambição. Li-a e imediatamente me lembrei da minha avó materna e da minha mãe, que tantas vezes utilizam a bela expressão que infelizmente se foi perdendo — num romance do Brasil e sem acordo nenhum.