terça-feira, 30 de abril de 2013

Épico, brilhante e exemplar



Chegado mais ou menos ao primeiro terço das 730 páginas de Joseph Anton uma memória, de Salman Rushdie, posso finalmente arriscar-me a recomendar a leitura desta espécie de autobiografia do escritor a quem os radicais islâmicos condenaram à morte. Narrados na terceira pessoa, como se o pseudónimo da clandestinidade se tivesse efectivamente transformado numa personagem real, os acontecimentos que, durante mais e nove anos, compuseram a vida do escritor de Os Versículos Satânicos vão traçando um retrato amargo (mas também irónico) do período em que Rushdie foi obrigado a viver escondido, sob protecção policial, enquanto queimavam efígies suas em praças públicas e as livrarias eram alvos de atentados à bomba.

Deprimido, assustado, beligerante, fraco, corajoso, autocomiserativo, mesquinho e determinado, Rushdie olha para aquele Joseph Anton e para os que o rodeavam com desassombro, transformando aqueles nove anos numa narrativa épica, brilhante e exemplar, que se lê como um romance, mas também como uma reflexão sobre o modo como o ocidente começou por tolerar, de modo ameno, aquela que foi uma das primeiras manifestações do radicalismo que havia, anos mais tarde, por ter concretizações muito mais espectaculares, cruéis e letais. Compara-o, de resto, à chegada dos primeiros pássaros no filme de Hitchcock, aparentemente inocentes, mas, afinal, a vanguarda do bando assassino.

Embora perseverando da ideia de que a liberdade de expressão constitui um direito inalienável (o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem consagra o direito à livre expressão e opinião, mas não acrescenta "a não ser que isso incomode alguém, especialmente alguém que esteja disposto a recorrer à violência"), Salman Rushdie defende sempre o carácter literário e artístico do seu livro, atacado por coisas que nem lá estão escritas. Se Os Versículos Satânicos é boa literatura, Joseph Anton uma memória (edição portuguesa da D. Quixote) é-o também. Sem dúvida.