Crónica urbana da revista 2 do Público, publicada no dia 10 de Junho
Ícaro não escolheu aleatoriamente o sítio onde devia ter iniciado o voo com as precárias asas que, segundo o mito, construiu com penas de gaivota e cera de abelha. Tinha de lançar-se de um sítio alto, o mais alto de todos, e então bater os braços como fazem os pássaros. Procurava escapar de Creta, mas não lhe bastava fugir – queria voar próximo do sol, no ponto mais alto da vertigem, e foi isto que o perdeu. Algo, evidentemente, que não deverá preocupar os clientes da esplanada que há algum tempo funciona no bar 17, no alto do portuense Hotel D. Henrique. É como estar no topo do mundo, muito próximo do sol. Entre nós e o abismo há apenas uma protecção de vidro, mas pode-se ficar aqui tranquilamente a beber uma cerveja e a contemplar a cidade como se fosse uma maqueta desordenada e habitada por pessoinhas sem nome.
A vista é espantosa e abrange desde as altas montanhas do Marão, muito ao longe, e o espelho prateado do mar, para lá dos prédios de Gaia e da Ponte da Arrábida, pela qual os automóveis transitam pequenos como formigas. O Douro não se vê, nem as fronteiras artificiais do homem, pelo que parece tudo uma só grande cidade, com casinhas encavalitadas sob a imensa e azul abóbada do céu. Duas gaivotas, como Ícaro, dão largas e lentas voltas a uma altura impossível, como aves de rapina, mas não lhes acontece nada. As asas delas são imunes aos estragos do calor. Não caem fulminadas ou chamuscadas. Rodam, rodam e rodam, como vigiando-se ou prometendo-se, em círculos que vagamente se tocam.
Distinguem-se perfeitamente o Coliseu, o Mosteiro da Serra do Pilar, os passos do concelho, a Ordem da Trindade, a Sé, os Clérigos, a calote esférica do Pavilhão Rosa Mota, a Casa da Música, os silos de estacionamento automóvel e os grandes centros comerciais. Tudo tão pequeno, e tão ao longe, que, excepto pela presença de uma ou outra ruína demasiado óbvias, é impossível perceber a degradação da cidade pelo que se vê ao nível dos telhados. Pela cobertura negra do Mercado do Bolhão, por exemplo, não se adivinha que há, lá dentro, paredes seguras por andaimes e espaços vedados à circulação, tudo entregue a uma incúria persistente; nem se imaginam as preocupações e os problemas em que hão-de estar matutando as minúsculas pessoas que dispersamente caminham em torno da estação da Trindade, arrastando as pequenas e precisas sombras, talvez pesadas, do final da tarde.
Chegam turistas e espantam-se também. Apontam “la mer”, “la église”, e fotografam panoramicamente o grande postal ilustrado da cidade. Estar ali, desfrutando da visão dos pássaros e da vertigem de Ícaro (ou de alguns deus que efectivamente existisse), parece uma coisa que não tem preço – impressão que, porém, depressa se revela precipitada. A cerveja pedida chega enfim, espumosa e dourada, com um pratinho de milho frito e amendoins. Pergunto pela conta e o empregado, irónico, pergunta se tenho a certeza de que quero pagar imediatamente. Acrescenta que já não me vai saber tão bem. Insisto e descubro que, no topo do mundo, um fino (uma vulgar imperial, como lhe chamam noutras partes) custa ao mortal contribuinte comum quatro euros e trinta cêntimos, incluindo vinte e três por cento de IVA . Estar ali não chamusca, pois, as asas – só a carteira.