Crónica urbana da revista 2 do Público, publicada no dia 27 de Maio
Quando vai caminhar à beira-mar, o senhor Palomar gosta de ficar a ver as pequenas ondas, levemente encrespadas, que se desfazem na areia. Mas não contempla – “porque para a contemplação é necessário um temperamento adequado, um estado de espírito adequado e um conjunto de circunstâncias externas adequadas”, condições que ele nem sempre reúne. Limita-se, isso sim, a observar uma única onda, precisa e concreta, bem definida. É isto o que sucede no livro que engendrou a muito particular personagem do escritor de Italo Calvino. Mas, se o Senhor Palomar fosse de verdade e vivesse no Porto, tenho a certeza de que não iria ver as ondas a uma praia qualquer; se fosse um portuense, ou um turista de passagem, o senhor Palomar preferiria ver o mar a partir do grande molhe de cimento que há na barra do Douro, no qual as vagas mais altas rebentam num grande estrépito de espuma salgada sobrevoando os ares.
Cada onda é, ali, única e singular. Ergue-se das águas, forma como uma lomba móvel que vem lambendo a parede do molhe, e depois colide num local preciso e dispara um imenso, caótico chafariz de espuma. Às vezes, nos dias de maior agitação marítima, como dizem nos boletins meteorológicos, as ondas varrem o molhe de um lado ao outro, atravessam-no, e ainda chegam com força suficiente ao ponto onde os arquitectos criaram uma câmara que conduz as vagas por uns tubos verticais invisíveis e as disparam, à superfície, numa formação de pequenos géisers de água salgada.
Pouco sensível às sensações vagas, o senhor Palomar talvez não aprecie o espectáculo das gaivotas pairando no céu, planando contra o vento com as asas enfunadas. Também lhe pode ser indiferente a silhueta do farol na ponta do molhe velho, o cilindro vermelho e branco do topo do molhe novo, a imagem do casario, a imponente parada das palmeiras para o lado do Passeio Alegre ou o postal ilustrado dos derradeiros metros do vale do Douro, antes de as suas águas se misturarem com o mar. Se calhar, o senhor Palomar tão-pouco aprecia os ocasionais barcos que cruzam a barra, ou o perfil da costa estendendo-se para Norte e Sul, tudo muito evanescente e cénico, como se ali estivesse formulando um convite implícito à contemplação e ao devaneio.
O senhor Palomar, que não contempla e “estabelece para cada um dos seus actos um objectivo limitado e bem definido”, pode ser capaz, ainda assim, de apreciar cada um dos concretos homens que ali está pescando à linha, algum preciso ocioso caminhando, cada um dos corpos que, às vezes, se deitam no muro do molhe a tomar sol, a criança única e individual que corre ou pedala a sua material bicicleta, ou o particular casal de turistas que se fotografa em contraluz para a perenidade incerta, encadeada a lente do aparelho pelo inclemente e espesso clarão da luz de Maio.
Se, acaso, passasse pelo Porto e topasse com o molhe Norte da barra do Douro, o senhor Palomar podia contemplar ou não contemplar as coisas vagas que aqui se encontram e se podem ver. As ondas, porém, parecer-lhe-iam inquestionavelmente únicas e irrepetíveis, cada qual avançando na contramão da grande parede de cimento que vai mar adentro: duas forças contrárias colidindo num ponto exacto e explodindo num turbilhão de espuma. Bastar-lhe-ia, porém, uma só vaga que resumisse e explicasse as ondas todas.