domingo, 24 de junho de 2012
Animais de Darwin
Texto da coluna Piolho dos Livros da revista 2 do Público, publicada no dia 17 de Junho
Num jantar no ano passado, durante as Correntes d’Escritas da Póvoa de Varzim, o músico, escritor e agora ministro da Cultura de Cabo Verde, Mário Lúcio Sousa, falou-me de um projecto literário que imediatamente captou a minha atenção: reconstituir ficcionalmente a passagem de Charles Darwin pela ilha de Santiago, em 1831. Por coincidência, tinha sido inaugurada no Porto, semanas antes, uma exposição dedicada ao biólogo inglês, na qual estava à venda A Viagem do Beagle (edição portuguesa da Relógio dÁgua), o livro de anotações em que Darwin narra a longa e fascinante viagem que deu origem à teoria de evolução das espécies. Comprei o livro e enviei-o ao Mário Lúcio, não sem antes ler as passagens relativas à escala do Beagle em Cabo Verde, durante a qual Darwin passou por sítios onde eu também já estive e observou coisas que, pelos motivos óbvios, não pude já presenciar século e meio depois.
É também pelos caminhos de Charles Darwin que, curiosamente, e também com 150 anos de atraso, transita Pedro, o narrador de Passageiro do Fim do Dia, o romance do brasileiro Rubens Figueiredo que, no ano passado, ganhou o Prémio Portugal Telecom e o Prémio São Paulo de Literatura. Numa viagem de autocarro que repete todas as sextas-feiras, entre a grande cidade e a sua periferia desorganizada e violenta, Pedro, que é um alfarrabista, lê, ou tenta ler, um relato da passagem do naturalista inglês pelos mesmos locais por onde transita o transporte público, tomados agora pelos bairros pobres e caóticos que cercam São Paulo e pela mistura de medo e indiferença que permite aos homens habitar em locais tão agrestes – tão humanamente desumanos.
O relato da viagem faz-se de um fôlego só, sem capítulos nem pausas, mas parece demorar muito tempo. O percurso do autocarro (ou do “ônibus”, como se diz no Brasil) é constantemente afectado e atrasado, ora por uma imóvel fila de trânsito, ora pelos rumores de que as ruas do Tirol, o bairro para o qual Pedro se dirige, estão bloqueadas por barreiras de pneus e caixotes de lixo a arder. Enquanto a viagem se arrasta, Pedro lê o livro de Darwin e pensa na sociedade, no mundo em que vive, em que vivemos todos, e a cujas contrariedades nos adaptamos para continuarmos a sobreviver. Agora, como no século XIX, o escravo que rema para que o lorde inglês viaje ainda se encolhe a qualquer gesto do senhor, por pouco agressivo que seja (como uma ordem que tenha sido inscrita no ADN da espécie). Entre nós, como em qualquer outro aspecto da natureza, persiste também a imagem Pepsis, a vespa caçadora, e de Lycosa, a aranha, os dois animais cuja caçada Charles Darwin presenciou quando passou pela região de São Paulo: uma captura “tão sistemática e brutal quanto a de um cão que persegue uma raposa”; ou, se calhar, tão desalmada quanto o triunfo de um homem sobre a miséria dos outros.