Não sei há quantos anos ouço e vejo essa mulher andrajosa, de ar tresloucado, que aborda na rua todos os que com ela se cruzam e berra aquele “senhora!, pague-me uma sopa, senhora! pague-me uma sopa”, olhando-nos com olhos celerados, febris, doentes, apontando-nos um dedo acusador, incriminador, como se fôssemos de algum modo responsáveis pelo estado a que ela chegou, desgrenhada, suja e muito magra, e por todas as sopas que ela não comeu.
Hoje ouvi-a apenas, muito sentado na minha cadeira do restaurante, diante do meu prato de rojões, do meu copo de vinho – ouvi a sua voz lá fora, na rua, repetindo aquele quase ameaçador “senhora!, pague-me uma sopa, senhora! pague-me uma sopa”, e creio que só agora me apercebi de que não sei nada sobre esta mulher que frequentemente encontro na rua, que nunca falei com ela e nem sequer sei como se chama. Só sei que pede sopas e que parece o mais lamentável dos seres humanos.
Creio que lhe tenho medo e não sei bem porquê. Evito-a. Mas não creio que evite apenas pagar-lhe a sopa. Pusilânime como sou, talvez adie o momento em que terei de olhá-la nos olhos, ver realmente visto o ser humano louco que pede sopas e reconhecer nela um mundo que não quero ver, de modo a poder continuar a viver naquele em que pacatamente me encerro, fecho e tranco, barricando-me contra toda a loucura e toda a pobreza que haja lá fora, procurando evitar que me contaminem.
Aquela mulher que pede sopas há-de ter uma história que a humanize e transforme num de nós. Ignorá-la é, pois, e sobretudo, uma forma de continuar a viver na ilusão de que ela é o outro, de um outro mundo do qual eu não faço parte - o que é só um engano, evidentemente, e uma ilusão provisória. Escutá-la sem ver a sua triste figura fez-me ter a certeza disto. Lá fora, pedindo sopa, qualquer um usaria as mesmas palavras que ela utiliza: Senhora!, pague-me uma sopa.