segunda-feira, 3 de outubro de 2011
O que somos*
A primeira vez que fui a Cabo Verde viajei na voz da Cesária Évora. Ela estava cantando descalça no palco do Coliseu do Porto e eu fiquei de pé, escutando-a num canto da sala, como embalado por aquela melodia suave e doce que é a morna. Não sabia, então, quase nada sobre Cabo Verde, e só muitos anos depois juntei o sussurro daquela música ao calor e às pessoas reais que compõem o arquipélago – aos sorrisos; aqueles sorrisos não se esquecem. Aconteceu-me com a terra da morna, portanto, uma espécie de amor à segunda vista: cruzámo-nos por acaso, pisquei-lhe o olho e talvez lhe tenha dito como me parecia bonita. Mas só quando nos revimos, anos depois, eu percebi completamente o significado do primeiro encontro e soube que Cabo Verde era um sítio onde (inexplicavelmente) estou em casa.
Quando fui a Cabo Verde em 2005, mais de dez anos depois de ter ouvido nha Cesária, o guia turístico que acompanhava os jornalistas apontou um edifício de três pisos numa avenida do Mindelo e disse-nos que aquela era a casa da “diva dos pés descalços”. Não era um prédio bonito, mas guardei uma imagem viva e nítida das paredes castanhas e do gradeamento da entrada. Três anos depois voltei ao Mindelo e fiquei alojado numa residencial com um pátio a partir do qual parecia possível ver quase tudo, o Monte Cara e a ilha de Santo Antão, a baía e o Porto Grande, e também, ali mais perto, a casa de Cesária. Convencido de que o lugar dos deuses é sempre no topo da montanha mais alta, dominando, majestoso, a paisagem e os homens, pareceu-me despropositado poder ver o Olimpo ali em baixo, em plano picado. Mas não dei importância ao assunto. Sou um pagão pouco dado a cultuar ídolos, mesmo se Cesária Évora, quando a vejo na televisão, me parece uma divindade saída de um molde antigo, milenar, movendo-se com vagar, falando lentamente e desenhando no ar misteriosos gestos com os dedos grossos carregados de anéis brilhantes.
Mais recentemente, enquanto corria à beira-mar, dei por mim a escutar nha Cesária cantando Zebra, uma morna em que interroga o estranho equídeo listrado e tenta compreender o que ele é – “Cuzé qui bo é /Qui ta matan nha pensar” –, repetindo no refrão, uma e outra vez, aquela palavra, zebra, de um modo que se tornou estranhamente hipnótico. Como andava, então, às voltas com a escrita de um romance no qual todas as histórias haviam de ser plausíveis, dei por mim a imaginar que a zebra não era um animal selvagem, mas antes um homem mestiço, crioulo, e que as cores das suas riscas eram como a memória óbvia e clara das duas raças, branca e negra, que tinham estado na sua origem. Inventei ali mesmo, enquanto corria, a história do homem-zebra, a qual abre o tal livro, que acaba de ser lançado.
No mesmo dia em que o romance chegou às livrarias, soube que Cesária Évora anunciou o fim da sua carreira e, menos de 24 horas depois, que tinha sido internada em Paris com um AVC. Nha Cesária ligada a uma máquina é uma coisa que faz pensar. Imaginei-a como um ser listrado de vida e de morte: uma zebra. É o que somos todos.
*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 27 de Setembro de 2011