segunda-feira, 11 de julho de 2011

O troika-troika-troika



Tendo embora prometido, há uma semana ou duas, mudar radicalmente de assunto e não prestar doravante atenção quase nenhuma às práticas da democracia parlamentar (aka forma de governo exercida em nome do povo para geral e exclusivo benefício das grandes corporações e dos mercados financeiros), não pude deixar de reparar no sujeito que, na noite do São João do Porto, rompia a multidão compacta do bailarico de Miragaia distribuindo sonoras marteladas e anunciando a cada passo, antes de desferir as pancadinhas, aquele bem significativo “olha a troika, cuidado com a troika”.

O resto do maralhal, bem entendido, longe de se sentir ameaçado e desviar a cabeça, entregava-se docilmente ao castigo de cada nova martelada. Em certos casos, que eu bem vi, algumas pessoas chegaram mesmo a sorrir, francamente bem-dispostas pelo humor das investidas e capazes até de tolerar o incómodo das pisadelas e dos empurrões, ou não fosse o são-joanino festejo uma espécie de Carnaval sem máscaras, durante o qual as paródias são recebidas com fleuma e sem que a quase ninguém ocorra levar a coisa a peito.

Dado a certas bizarrias, pus-me a imaginar o latagão que abria caminho à martelada como uma espécie de metáfora do longo braço da troika, mas logo me pareceu que alguma coisa naquela bota não batia com a perdigota respectiva. Estávamos todos num aperto (certo) e até com alguma falta de ar (certo), dedicando-se a dita troika a impor-nos a sua implacável regra (certo), agredindo-nos à martelada (certo) com certa malevolência (certo) e sadismo (certo). Acresce que, tal como inevitavelmente sucederá, o castigo da troika tombava selectivamente sobre os cocurutos de quem cometera a imprudência de participar no plebeu e popular festejo, deixando incólumes os precavidos que celebravam particularmente em apartamentos de cobertura, barcos e jardins de vivendas, atirando ao ar o próprio fogo-de-artifício e não repartindo sardinha nem broa (muito certo).

O que nisto havia de errado não era a fraca equanimidade do castigo, que a desgraças dessas já o corpo está sobejamente afeiçoado, mas outros dois pormenores que me pareceram muito dissonantes: primo, e desde logo, o povo sorria quando directamente atacado e não esboçava nenhum protesto, o que causa espanto mesmo se não estamos entre gregos nem troianos, mas junto da serena e pacata gente lusa dos brandos costumes; depois, as marteladas daquela troika não machucavam quase nada, amortecidas por uma almofadinha de plástico em fole, a qual, em alguns modelos mais sofisticados, chega a produzir uma musiquinha estridente, espécie de assobio ou apito, somando-se ao polifónico coro das pancadinhas de São João.

Desiludido da metáfora que tinha começado a imaginar, pus-me, ainda assim, a escutar os ruídos da festa. Destrambelhado como sou, pareceu-me escutar distintamente, entre os pim-pim-pim, os toc-toc-toc e os truca-truca-truca da martelada geral, uma onomatopeia nova. Havia no ar, tenho a certeza, um ruído ruim. Ouvia-se muito bem aquele troika-troika-troika-troika.



*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 28 de Junho de 2011