domingo, 1 de maio de 2011

Um romance que é como o cavername de um romance


Tinha-me esquecido do Kirmen Uribe, o basco discreto que conheci num encontro ibérico de jovens escritores que decorreu em Mondoñedo, na Galiza, em Novembro de 2002. Agora em Fevereiro, na Póvoa, calhou ficarmos sentados à mesma mesa depois de um jantar, enquanto bebíamos vinho e contávamos anedotas. O rosto dele pareceu-me familiar, mas apenas isso. Depois ele perguntou-me se eu não tinha estado naquele encontro de Mondoñedo. Fez-se luz. Claro. Estávamos lá os dois.

O Kirmen estava na Póvoa de Varzim, nas Correntes d'Escritas, a lançar o primeiro romance, "O Dois Amigos", que, em Espanha, se chamou "Bilbao-New York-Bilbao". Li-o agora e recomendo-o vivamente. Começa por pretender ser um livro sobre um tempo perdido, o mundo desaparecido dos velhos pescadores de Ondarroa, do avô de Kirmen, mas acaba por ser, além disso, uma sucessão de belas e tocantes histórias que são os passos que o narrador vai dando à medida que prepara a escrita do romance, as reflexões que faz, as dúvidas que tem e as estratégias que adopta para coser os episódios que descreve. É, pois, como o esqueleto de um romance, ou o cavername de um romance, para ser fiel ao imaginário náutico que atravessa a narrativa - uma coisa simultaneamente delicada e sólida, elegante e bela.

Vale a pena lê-lo por vários motivos, mas, se tivesse que escolher uma história de entre todas as que compõem a narrativa, creio que escolheria aquela em que se conta o modo como Kirmen e Nerea se conheceram e ficaram juntos, por causa de uma crónica em que o escritor contava um baile de há muitos anos atrás: "À entrada, uma mulher ofereceu-me uma carta, como ao resto dos rapazes. A mulher tinha dois baralhos e aos rapazes tirava de um e às raparigas, de outro. Cada um devia dançar com quem tivesse a mesma carta. Que angústia! Sem conseguir suportar a vergonha, atirei a ditosa carta para um canto e, no final, não dancei com ninguém.
(...) Era isso que a coluna contava.
O artigo foi publicado no Outono de 2005. Uma noite daquele Inverno Nerea aproximou-se de mim e disse-me: “Eu era a rapariga que, em San Jerónimo, tinha a mesma carta que tu”".


Como se isto não bastasse, há ainda, em "O Dois Amigos", um farol, o farol de Stornoway, na Escócia; um farol como em "As duas águas do mar", do Francisco José Viegas, e em "El faro por dentro", de Menchu Gutiérrez. E fala-se do desastre do petroleiro Prestige, na costa da Galiza, que tinha acontecido poucos dias antes daquele encontro de Mondoñedo. Lembro-me de como, então, a Rosa Aneros acompanhava, nos bares aonde íamos, as notícias da televisão, com um olhar angustiado e triste, como se o crude do Prestige não estivesse apenas manchando o mar e as praias da Galiza, mas maculasse os olhos e a vida da Rosa e dos outros galegos que lá estavam. É por isso que sei sempre em que ano estive em Mondoñedo.