segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
Planeta de macacos
Um mito grego antigo narrava, séculos antes de Noé ter construído uma arca, como Zeus fez desabar sobre o mundo um dilúvio destinado a castigar os homens pelas suas inclinações ímpias. Da chuvada só se salvaram Deucalião, o mais justo dos homens, e Pirra, a mais virtuosa das mulheres – a bordo, pasme-se, de uma caixa de madeira que conseguiu alcançar o cume do monte Parnaso, o único sítio da Terra que escapou à inundação.
A história, porém, não serve apenas para demonstrar a falta de criatividade das religiões posteriores, uma vez que fornece também uma explicação razoável para o carácter bruto dos homens do porvir. Finda a tempestade, Deucalião e Pirra foram, sozinhos no mundo, caminhando e lançando pedras para trás das costas. Das pedras que ele lançava sobre a terra húmida nasciam varões, e fêmeas dos calhaus que atirava ela. De acordo com esta interpretação do mito, somos todos calhaus com olhos – e pouco mais.
Simpatizo com a mitologia grega, mas tendo a emocionar-me mais com histórias como a da coelha grávida que, a caminho de Porto Santo, em 1419, pariu e, como uma Eva felpuda e de orelhas compridas, deu origem a todos os coelhos que existem na ilha. O P2 contava-o ontem, mas eu tinha ouvido a fantástica narração na semana passada, pela voz do biólogo Nuno Ferrand de Almeida. E arrepiei-me com essa demonstração prática da evolução das espécies, como se estivesse diante de uma revelação. Infelizmente, sendo também pouco mais do que um calhau com olhos, ainda estou a tentar perceber aquilo que me foi revelado.
Embora filho de Deucalião, prefiro, pois, a versão segundo a qual o Homem e os outros animais resultam da evolução natural das espécies, tal como Charles Darwin a desvendou; que somos todos netos de um macaco que se pôs em pé, aprendeu a atravessar o polegar diante da palma da mão e entendeu, depois, que a cabeça podia servir para alguma coisa além da criação recreativa de piolhos. Encantou-me, por isso, a história de Ambam, um gorila de dorso prateado do zoológico de Kent, em Inglaterra, que caminha em pé (“como um homem”). Vêem-se as imagens disponíveis na internet e parece mesmo que só lhe falta uma cartola no alto do cocuruto e um charuto na mão para poder ser confundido com um homo sapiens (ou com um barão da indústria).
Parece que o pai de Ambam também é capaz de andar em pé, o que talvez signifique, no grande concerto da evolução das espécies, que estes gorilas se encontram num momento em que podem começar a parecer-se com os humanos comuns. Calhando, a ficção cinematográfica de O Planeta dos Macacos não está muito longe de se concretizar e os nossos tetranetos poderão conviver, um dia, com símios inteligentes. Podemos, assim, esperar que esses futuros seres cheguem a ser tão bonitos e sensíveis como a Ari protagonizada por Helena Bonham Carter, e tão pacíficos e fleumáticos como Ambam, o gorila de Kent. Com sorte, os crioulos que resultem dos cruzamentos deles com os humanos ainda nos podem salvar das macacadas deste mundo.
*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 1 de Fevereiro de 2011