segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Ler e escrever

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 10 de Agosto de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



Haverá, estou certo, quem se encontre em posição de refutar o que vou escrever, mas cá vai: o cérebro é um admirável mistério. Poderia invocar vários exemplos prodigiosos, mas estou estranhamente fixado no caso de Howard Engel, um escritor canadiano: numa certa noite do ano 2000, Howard deitou-se e dormiu um sono perfeitamente descansado, mas, quando acordou, tinha-se tornado incapaz de ler, embora mantivesse intacta a capacidade para escrever (escreveu e publicou, de resto, vários romances de então para cá, e ainda, em 2007, o ensaio autobiográfico O homem que esqueceu como se lê).

Howard Engel é, tanto quanto consigo perceber, um caso raro de alexia (assim se chama a doença), na medida em que esta surge normalmente acompanhada pela agrafia, a incapacidade para escrever. A pesquisa sumária que fiz (que me perdoem os neurologistas e outros especialistas, mas este texto está a ser escrito por um cidadão com pouco mais do que a quarta classe) permitiu-me perceber que os doentes de alexia e agrafia mantêm, de um modo geral, a capacidade de entender a linguagem oral, aquilo que lhes é dito. Um dos casos mais famosos de alexia foi descrito pelo neurologista francês Joseph Dejerine, o qual, num exame post-mortem, descobriu uma lesão no cérebro de um homem que, enquanto vivo, conseguia dizer correctamente palavras e letras sem, contudo, ser capaz de lhes atribuir um significado concreto.

Fascina-me a complexidade de um órgão, o cérebro, cujo funcionamento depende de detalhes. Basta um pequeno desvio, uma mínima lesão, um neurónio destrambelhado, para que coisas tão simples como atribuir significado a uma letra, ou mover um dedo, deixem de ser exequíveis. É admirável que, de um dia para o outro e de modo totalmente involuntário, uma singela e inexplicável lesão seja capaz apagar uma competência que qualquer outro indivíduo não conseguiria erradicar de si por muito que se esforçasse.

No romance Bartleby & Companhia, o catalão Enrique Vila-Matas reflecte sobre os vários motivos que levaram autores como Rimbaud, Salinger ou Juan Rulfo a deixarem de escrever de um momento para o outro - o Nobel mexicano, por exemplo, alegava que tinha um tio, Celerino, que lhe contava as histórias que escrevia, e que ele entretanto morreu, privando-o da sua matéria-prima -, como se tivessem sido atacados por uma espécie voluntária de agrafia. Vila-Matas chama-lhes, de resto, escritores ágrafos, embora fossem perfeitamente capazes de escrever (se quisessem).

Já o argentino Jorge Luís Borges é um caso completamente diverso. O escritor ficou cego antes dos 60 anos, devido a uma doença degenerativa congénita, e deixou de escrever e de ler. Mas, paradoxalmente, continuou a ler e a escrever. Lia através dos olhos e das palavras daqueles que para ele liam em voz alta. E escrevia ditando as frases que se lhe formavam na cabeça, sem necessitar de associá-las aos símbolos gráficos que são as letras. Os seus olhos seriam aléxicos, e as suas mãos ágrafas. O cérebro dele, não.