(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 8 de Junho de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)
Julguei ter visto, na semana passada, um bando de andorinhas movendo-se no céu, mas concluí, entretanto, que não consigo distinguir uma andorinha de um estorninho. Apurei que são ambos pássaros migratórios e que voam em grupo, formando uma espécie de nuvem caprichosa que muda constantemente de direcção, mas confundo-os muito facilmente.
Fiquei, por exemplo, convencidíssimo de que eram andorinhas as aves que aparecem fugazmente no filme Aquário/Fish Tank, de Andrea Arnold, voando no céu azul de Barking, na área suburbana de Londres. Por causa dessas imagens, lembrei-me de uma das observações de Senhor Palomar, a personagem literária de Italo Calvino. Quando, porém, fui reler essa passagem do livro, deparei não com uma descrição de bandos de andorinhas, mas com o voo dos estorninhos “na atmosfera violeta do pôr-do-sol” de Roma: uma “avalancha de asas” que, diz Palomar, parece “um corpo composto por centenas e centenas de corpos separados”.
Confundido por esta leitura, já não sei se são realmente andorinhas as aves que aparecem no firmamento Polaroid de Aquário ou, sequer, se eram andorinhas os pássaros que eu me lembro de ter visto, há muitos anos, voando em grupo no céu do Porto. Como, em todo o caso, não me recordo de ter visto nenhuma dessas nuvens aladas nos últimos tempos - afugentadas talvez pelas gaivotas, pelos pombos ou pelos aviões da Red Bull -, vejo-me na desconcertante condição de nutrir certa nostalgia por uma recordação que não sei descrever completamente. Em todo o caso, trata-se de uma nostalgia boa e que evoca uma certa inocência perdida ou, mais simplesmente, uma época em que o tempo me sobrava ao ponto de poder reparar em coisas tão inúteis (e tão pouco pragmáticas) como um bando de andorinhas.
Percebo, pois, tanto de ornitologia como de engenharia aeroespacial (rigorosamente nada), mas, em certos momentos, parece-me particularmente aconselhável escrever sobre a subtil poesia das pequenas aves para evitar tratar de passarocos mais sérios. Nada direi, pois, sobre o assalto de luva branca que, dentro de dias, começará a ser praticado por empresas privadas às quais o governo socialista concedeu o direito de cobrar portagens em estradas já pagas pelo dinheiro dos impostos dos portugueses e dos europeus. Contornarei igualmente a proposta social-democrata para “liberalizar” os despedimentos à boleia da crise, bem como as outras vilanias essenciais à veneração da Nossa Senhora das Finanças e à alimentação do insaciável monstro dos mercados.
Enquanto fraco observador das aves de rapina, constato que me custa também distinguir os milhafres-rosa dos falcões-laranja, ou vice-versa, no decisivo momento em que, aliados a bem da pátria, vêm em voo picado para bicar o coelho assustado do meu ordenado. Já vimos estas aves e este filme – e, apesar das semelhanças que há, não foi n’Os Pássaros de Hitchcock. Estou um pouco atormentado, isso sim, e não sei ainda se hei-de rir ou chorar. Mas talvez não tenha sido boa ideia escrever sobre as andorinhas.