segunda-feira, 21 de junho de 2010

O realismo visceral

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 25 de Maio de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



Fotografia: Graciela Iturbide



Ao contrário do poeta García Madero, personagem do escritor chileno Roberto Bolaño, não fui convidado para fazer parte do realismo visceral. Não importa. Suponho que posso perfeitamente juntar-me ao grupo sem avisar ninguém, mesmo que, lidas as quinhentas páginas de Os Detectives Selvagens, continue a não saber muito bem em que consiste o realismo visceral. García Madero também não sabia.

O realismo visceral é uma mentira. Existe apenas na ficção, no romance de Bolaño, mas trata-se de uma mentira tão bela e instigante que vamos atrás dela como se, no fim da viagem, se nos fosse revelar uma coisa maravilhosa e única, como o Graal ou a Atlântida. Não chegamos a ver quase nada, apenas um poema gráfico de Cesárea Tinajero, a suposta fundadora dessa imaginária e peculiar corrente literária, mas Os Detectives Selvagens é, em todo o caso, uma coisa torrencial e avassaladora. Andei com o livro para trás e para a frente, lendo-o em viagens curtas de autocarro e, às vezes, em pé, enquanto esperava na paragem. Mergulhei intensamente nessa mentira e, até ao fim, preferi não saber se os visceralistas (ou real visceralistas ou, simplesmente, “a pandilha”) existiram de facto ou se foram criados a partir de alguma história real. Se, enfim, podia haver alguma verdade nas centenas de depoimentos a partir dos quais se recompõem a história de Cesárea, a poeta mexicana dos anos 1920, e, depois, a trajectória de Ulisses Lima e Roberto Belano, os jovens poetas que, na década de 1970, refundam o realismo visceral e adquirem o paródico poder de convidar novos membros e de expulsá-los.

E depois há o inocente e desconcertante diário de García Madero, transformado em observador involuntário do momento crucial do realismo visceral: aquele em que Belano e Lima, saindo da Cidade do México para ajudar uma prostituta a fugir do seu chulo, acabam percorrendo erraticamente o deserto de Sonora, procurando Cesárea Tinajero, os sinais que dela ainda pudessem existir, e acabam por encontrá-la lavando roupa num tanque. “Não tinha nada de poética. Parecia uma rocha, ou um elefante. As suas nádegas eram enormes, e moviam-se ao ritmo que os braços, dois troncos de carvalho, imprimiam ao esfregar e enxaguar a roupa”, descreve García Madero.

Sucede que Belano e Lima encontram Cesárea no mesmo dia em que o chulo de Lupe os encontra a eles. As coisas precipitam-se e depois o grupo divide-se e como que se dissolve na paisagem agreste de Sonora. García Madero é o único que lê os cadernos de Cesárea. Mas nada conta sobre o que lê. Escreve, também ele, os três poemas gráficos em que o romance se apaga como um traço estendido até ao horizonte, a caminho de nenhures.

Em 1997, o actor brasileiro Lima Duarte protagonizou um filme, A Ostra e o Vento, de Walter Lima jr., no qual dá corpo a um faroleiro vestindo uma camisola grossa de gola alta. Um dia perguntaram-lhe que país era aquele em que decorre a acção do filme. Lima Duarte respondeu que se tratava do país do cinema e do sonho. É a terra onde também o realismo visceral existe.